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Homem constrói sua casa com madeira entalhada há 30 anos

 Isabro Ortega, um entalhador autodidata, esculpiu as vigas do teto de madeira de sua casa nos EUA - John Burcham/The New York Times
Isabro Ortega, um entalhador autodidata, esculpiu as vigas do teto de madeira de sua casa nos EUA Imagem: John Burcham/The New York Times

Joyce Wadler

Do The New York Times, no Novo México, nos EUA

14/05/2013 07h03

Uma coisa importante para se lembrar sobre castelos no céu é que nem sempre são obras de arte bem acabadas. Houve uma época em que os muros ficavam inacabados, o chão das salas de estar incompleto e na frente, do lado de fora, havia pilhas de pedras ou sobras de madeira que poderiam fazer com que um cavaleiro em sua armadura reluzente caísse num fosso não concluído. 

É assim a casa de Isabro Ortega, apelidada por ele de “Casa de Las Nubes” ou “Casa das Nuvens”: parte obra de arte, parte construção inacabada e que ainda tem muito, muito a ser feito. Ortega, um entalhador autodidata de 60 anos, vem trabalhando em sua residência há 30 anos e brinca que ainda pode ser que leve mais trinta anos para terminá-la. 
 
 
O reboco nas paredes externas é o que os empreiteiros se referem como primeira camada ou raspagem. A parede externa de pedras que acompanha as portas da frente entalhadas à mão é irregular e chega a ter 30 centímetros de espessura. As áreas que a maioria dos construtores considerariam prioridade – digamos, a sala de estar e a cozinha – permanecem inacabadas, com uma cerca de galinheiro saindo de uma parede e anotações rabiscadas em placa de gesso, enquanto que os espaços que qualquer pessoa com sensibilidade cuidariam por último, se é que o fariam, já foram complexamente detalhadas. 
 
Um beijo à despensa
 
O banheiro principal tem um gabinete para papel higiênico com portas entalhadas do lado de dentro e de fora, mas o encanamento da pia ainda precisa ser instalado. A cozinha tem armários tão belamente esculpidos que poderiam servir de estudo para pinturas, mas o chão é de terra. E a despensa, lar dos feijões, das batatas e das garrafas de Coca-Cola é magnífica, um tributo à beleza pela beleza em si, onde poucos vão ver – porque, de verdade, quem pede para conhecer o local onde se armazena os mantimentos da casa? – que a repórter, encantada, joga um beijo.
 
“Eu também faço isso às vezes”, disse Ortega. “Eu beijo minha madeira, qualquer coisa que eu entalhe. Fico apaixonado. Ela é a minha namorada, eu a estou construindo. Ela é minha anjinha, minha inspiração”.
 
Truchas, uma comunidade com cerca de 560 pessoas, fica logo na saída da estrada para a cidade Taos, a uma hora ao norte de Santa Fé. A localidade tem cerca de dez galerias, conforme Jeane George Weigel, uma artista que vive em Truchas e mantém um blog chamado High Road Artist. Mas existe somente um pequeno armazém de comidas, conta Ortega, que abre esporadicamente, de acordo com o humor do dono. 
 
A fama da comunidade vem em partes poque o filme de 1988, “Rebelião em Milagro”, foi rodado na localidade. E a área remota de Truchas, onde o terreno vira um cânion e onde Ortega está construindo sua casa, tira o seu fôlego a ponto de engasgar. Os espaços são realmente amplos e abertos. Dá para entender por que os artistas vêm para cá e porque, quando o clima está bom, a State Road 76 é o cenário do rastro de um colecionador de arte, com placas como “Escultor de Metal”, “Entalhador de Madeira” e “Artista Trabalhando” pontuando a paisagem. 
 
  • John Burcham/The New York Times

    Ortega conta que às vezes fica até duas, três horas da manhã entalhando partes da casa

Dois arquitetos do Texas, Stephen B. e Stephanie M. Chambers, conheceram Ortega enquanto estavam pesquisando sobre a arquitetura da Irmandade Penitente, um grupo católico ao qual Ortega pertence, homem profundamente religioso que é. Ele convidou os profissionais para conhecer sua casa, que ficaram impressionados o bastante para mostrá-la em estado extremamente inacabado no blog que mantém.  
 
Quando a repórter chegou, entretanto, a casa estava mais apresentável. Ao saber que um visitante da Costa Leste estava a caminho, dez pessoas da família de Ortega passaram três dias ajeitando tudo. 
 
Ao som de Rolling Stones
 
Ortega, um homem exuberante vestido com shorts largo e camiseta, a princípio utiliza um tom exagerado, como um personagem de histórias em quadrinhos. “Aaiii! Você vai me fazer famoso, como o Eric Burden do The Animals ou o Mick Jagger dos Stones!”. Uma atitude de quem está nervoso, mas que logo desaparece. Em suas mãos, tem uma faca do tipo usado para cortar linóleo. Ortega está trabalhando em uma cruz decorativa, um presente para a visitante. 
 
“Eu estava na sexta série quando os Beatles vieram para os Estados Unidos, depois os Rolling Stones, depois os Animals”, diz. “Eu estava contando para a minha irmã outro dia que 90 por cento desta casa foi construída ao som da música da invasão britânica”.
 
A repórter imaginava que, pelo fato de Ortega ser tão devoto, ouviria música religiosa. 
 
“Eu ouço muita música religiosa quando estou trabalhando, mas a invasão britânica sempre foi a minha inspiração”, conta. “Nunca tinha visto gente cabeluda, meu pai sempre cortou nossos cabelos, que ficavam sempre muito curtos. Foi incrível ver todos aqueles cabeludos cheios de talento”.
 
Ortega não sabe ao certo quando seus ancestrais se estabeleceram na região, que foi fundada como uma capitania espanhola nos anos 1750, mas acredita que pelo menos parte de sua família veio da Espanha. Ele sabe que a casa onde cresceu e que foi demolida, tinha mais de 100 anos de idade. Ortega, cujo pai era carpinteiro e faz-tudo, foi um dos nove filhos em uma casa com dois quartos, sem banheiro e onde a água era transportada de um riacho próximo. 
 
“Éramos pobres, mas tínhamos muito amor”, diz. “Éramos multimilionários do amor”.
 
Amor e caixões
 
O entalhador autodidata usa a palavra “amor” com frequência também quando está falando sobre madeira. “Acho que sempre fui apaixonado por madeira, desde pequeno, porque na nossa rua havia um homem que tinha uma loja, e eu costumava parar ali e ficar vendo como ele trabalhava. De vez em quando eu pedia para ele um pequeno pedaço de madeira. Eu fazia meus próprios brinquedos. Na quinta ou na sexta série, esculpi um coração e vendi para uma garota por 25 centavos. Eu achava que tinha ficado rico”.
 
Ortega gostaria de ter feito faculdade e de ter se tornado arquiteto, mas ninguém em Truchas tinha esse dinheiro todo. Ao invés disso, depois de se formar no colégio, passou a trabalhar como operário. Fez o que todo mundo fez e procurou uma escola profissionalizante, onde arrumou uma namorada séria. Estudou para se tornar um oficial de justiça, odiou, foi então trabalhar como carpinteiro para o sistema educacional público, onde diz ter arrumado problemas por ser muito criativo. Acabou seguindo seu próprio caminho como carpinteiro, criando elaboradas portas entalhadas (que hoje ele vende por cerca de US$ 1500 cada), e às vezes alguns caixões.  
 
O primeiro que fez foi para um barman local. “Quando ele viu, perguntou se podia experimentar. Então ele entrou e pediu que eu o trancasse”, lembra Ortega. “Eu o tranquei e ficamos ali por um tempo, depois ele bateu e saiu, então falou: ‘sim, ele é ótimo’. Ele manteve o caixão no bar, em cima do refrigerador, até morrer”.
 
Em 13 de junho de 1984, uma data que Ortega anuncia como qualquer outro o faria se fosse um aniversário, começou a construir esta casa em um acre e meio de terra que fora deixada pelos seus pais. Ele usou tijolo tradicional, feito com lama e palha no primeiro andar, e armação de madeira no segundo andar e no sótão. Dois anos depois, sua namorada o deixou, depois de 12 anos juntos. 
 
Será que havia alguma ligação? 
 
“Não”, disse Ortega. “Ela encontrou outra pessoa e se casou. Ela sabia que eu só queria trabalhar na casa e ela queria um marido”.
 
Isso parece uma ligação. Qual era a intensidade, a frequência com que ele trabalhava na casa?
 
“Você não vai acreditar se eu te contar. Juro que acordo às cinco da manhã e nos dias de folga trabalho até às oito ou nove da noite, ou até mesmo até umas duas, três da manhã. Eu entalhei até o assoalho, fiz tudo à mão, com uma faca. Estou dizendo, eu sou maluco”.
 
  • John Burcham/The New York Times

    Enquanto se dedica a esculpir a madeira na área interna da casa, por fora parece inacabada

Ortega estima que já gastou cerca de US$ 40 mil na sua casa ao longo dos anos. Às vezes, ele mesmo junta o material, indo até as montanhas para pegar o álamo que usou na despensa e o pinho para as vigas. 
 
Até que a morte nos separe
 
Todo esse entalhe é complexo, tem quase uma alma moura. Cada cômodo tem um teto único: o da sala de jantar, por exemplo, é um salgueiro com um padrão em ziguezague, sobreposto por pinho entalhado. A cama em que Ortega dorme é tão ornada que poderia estar em um museu. 
 
Por todos os cantos há rosetas de cobre batido que Ortega esculpe das sobras que consegue com um amigo que instala revestimento de cobre em canais. Há também retratos dos lendários entalhadores de Novo México, Patrocinio Barela e Jose Dolores Lopez, em (é claro) porta-retratos entalhados. Até as galinhas de Ortega vivem em um viveiro com portas lindamente esculpidas.  
 
Com certeza há coisas ali que um designer poderia questionar: por que Ortega não colocou uma janela na sala de leitura para poder aproveitar aquela vista magnífica do vale? E por que a copa dá de frente para a estrada? 
 
Mas o mais importante é: por que está demorando tanto para ele terminar a casa? 
 
Em partes, diz Ortega, é porque tem que fazer trabalhos de carpintaria para se sustentar. Mas também, segundo ele, “eu quero ser um artista único, não produzir da noite para o dia”.
 
Em outras palavras, ele quer que a casa seja um reflexo do trabalho de sua vida? 
 
Ortega concorda: “Se ela nunca for terminada, eu ainda assim estarei feliz porque isso é o que eu amo fazer. Mas quem sabe, talvez um dia eu termine. Tenho sonhado em transformá-la numa hospedaria, assim o mundo todo poderia conhecê-la, e construir uma pequena casa ao lado do galinheiro – para ganhar um dinheirinho quando eu estiver muito velho para entalhar”.
 
Quando ele espera fazer isso? 
 
“Não sei. Quando ficar pronta, ficou. E se não ficar pronta, não ficou. Vou trabalhar nela até que a morte nos separe”.
 
Isso não é parte dos votos de um casamento?
 
Ortega ri: “Sim, talvez eu esteja casado com ela, minha querida, meu anjo. Eu a construí”.
 
Ele se refere novamente ao hábito de beijar a madeira. “É tudo obra minha. Às vezes faço trabalhos para outras pessoas, e que eu sei que nunca mais vou ver. Aquela porta vai para o Texas, para o Arizona, para o Colorado… eu dou um beijo de adeus nela”.
 
E continua: “Quando eu a encontrei, ela estava lisa e eu a esculpi, e agora ela está mais feliz. Vê o verde, como ele está mais feliz? Porque eu entalhei e pintei, e agora é uma madeira diferente de quando eu a encontrei. É por isso que adoro beijar o meu trabalho”.
 
Tradutor: Erika Brandão e Karine Serezuella (edição)