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Vítimas de duplo preconceito contam suas histórias

Colaboração para o UOL, em São Paulo

18/04/2016 13h01

Não basta ser alvo de atitudes discriminatórias por causa da etnia, do gênero, da orientação sexual ou da aparência. Para algumas pessoas, as manifestações hostis alheias acabam magoando e ofendendo por mais de uma razão. Aqui, oito delas relatam suas vivências de dor, esperança e superação.

  • Ricardo Matsukawa/UOL

    Gilberto Martins, 47, agente administrativo, de Guarulhos (SP)

    "Como afrodescendente, sempre sofri os preconceitos típicos de nossa sociedade. Aos 13 anos, comecei trabalhar em uma padaria, onde a maior parte dos meus colegas me chamava de 'negão' ou 'baiano'. Embora a forma de tratamento não fosse pejorativa em todas as ocasiões, sempre existia o duplo sentido típico dos eufemismos brasileiros. Aos 30, ao sair do trabalho, fui vítima de duas balas perdidas. Fiquei paraplégico, com três filhos pequenos para cuidar. Reagi, retomei os estudos e me formei em ciências econômicas. Nessa trajetória, sofri novos preconceitos, sim, mas também aprendi muito. Sair de casa ainda é uma aventura. Uma vez, a roda dianteira de minha cadeira encaixou em um buraco e a parte emborrachada desencaixou, impedindo-me de prossegu. Ao pedir ajuda a um senhor, ele me respondeu rispidamente: 'Não tenho trocado, não, amigo'. Fiz questão de demonstrar que não queria o dinheiro dele, apenas precisava de ajuda. Ele ficou sem graça pela gafe e me ajudou. Hoje, o momento em que mais me sinto discriminado ainda é na condução pública intermunicipal. É frequente ser deixado no ponto com a desculpa de que o elevador está quebrado. Algumas vezes, fica evidente que o cobrador e/ou o motorista não sabem usar o equipamento, então dizem que quebrou. Há situações em que os passageiros reclamam da demora em embarcar o cadeirante, mas não me deixo desanimar com tais preconceitos, pois também encontro pessoas dispostas a ajudar ou que são gentis. Isso dá um pouco de alento e alguma esperança de que ainda temos chance de viver em uma sociedade melhor. Embora, muitas vezes, tenha a sensação de que nós, deficientes, somos invisíveis socialmente."

  • Arquivo pessoal

    Aline Santos, 23, administradora, de Santo Antônio de Jesus (BA)

    "Já sofri triplo preconceito por ser mulher, negra e lésbica. As doses de discriminação podem ser diárias quando se vive em uma sociedade machista, racista e homofóbica. O sentimento inicial é de raiva por ser alvo gratuito, pois não há realmente um motivo aceitável para isso. Mas não devo sentir nada além de pena de pessoas pouco evoluídas que consideram o outro menor pelo sexo, cor ou orientação sexual. Para essa sociedade, desejo mais inteligência, pois é visível que falta. Quem sabe assim comporte-se com mais civilidade, o que é básico para viver."

  • Edson Lopes Jr./UOL

    Marcelo Gil, 47, militante da causa LGBT, de Santo André (SP)

    "Vivo dentro do universo LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) quase 90% do meu dia a dia. O que sinto e presencio é que hoje, caso você não seja de um partido político ou compartilhe das mesmas ideias, acontece a exclusão. Quem não aceita está contra. Percebo que pessoas que dizem pregar a democracia são, na verdade, ditadoras que querem impor regras de pensamento. Sobre a convivência social, há preconceito entre os próprios gays, principalmente em relação à idade. Completei 47 anos em outubro de 2016 e sei que já perdi a beleza da juventude. Tenho pouco cabelo e sempre fui um pouco acima do peso, mas o que importa é estar de bem com a vida e estou. Mas já fui ofendido com frases como 'bicha velha', 'o que essa gay velha quer aqui?', 'chegou o decano do movimento gay do ABC'. O universo gay preza a beleza e a juventude, mas muita gente se esquece que o tempo passa. Minha família, em geral, não aceita a minha orientação sexual, e, por esse motivo, acionei a Justiça para ter o direito de entrar na minha casa e ter meus direitos a uma herança garantidos por lei. Apesar de tudo, acredito que um dia esse mundo vai mudar e que as pessoas vão se unir e parar com suas brigas de vaidade."

  • Arquivo pessoal

    Laysa Carolina Machado, 44, historiadora, de São José dos Pinhais (PR)

    "Passei por inúmeros preconceitos. Primeiro por ser filha de pai negro e depois por me assumir transgênero. Nasci e cresci em uma colônia de descendentes alemães chamada Colônia Vitória, em Guarapuava (PR). Sentia todos os dias o preconceito das pessoas, na forma de olhares e apelidos. Sobre a questão trans, o preconceito é diário. Recentemente, um post meu no Facebook viralizou porque um portal de notícias anunciou em seu Twitter: 'Polícia investiga demissão de professora transgênica em Jundiaí' e eu respondi: 'Sou uma diretora e professora transgênera, transgênica é a soja da sua mãe'. A imprensa ainda nos trata como bichos exóticos sexualizados e burros, detesto isso. Gostaria que me tratassem com respeito. Ninguém pergunta para uma professora cisgênero se ela tem vagina. Então, porque preciso me justificar toda hora? Isso é pedir licença por existir. Não nascemos preconceituosos, nos tornamos preconceituosos. O preconceito é institucionalizado."

  • Arquivo pessoal

    Rita Fernandes, 33, técnica em auxílio veterinário, de São Paulo

    "Sou uma cidadã que honra seus compromissos e lésbica. Adoto um perfil não tão delicado na maneira de me vestir, gosto de mesclar peças masculinas em um estilo muito pessoal. Falar sobre preconceito é praticamente relatar boa parte da minha vida em situações diversas, porém chamo a atenção para um acontecimento específico, ocorrido no ano passado, por usar dreadlocks, um penteado afro. Fui hostilizada pela atendente de uma lanchonete que, ao me ver, comentou com o colega de trabalho: 'Olha o bicho sapatão', e riram muito. A princípio, tentei ser fria e ignorar, mas era forte o que ardia em mim. Decidi reclamar à administração, mas era horário de almoço e não tinha como esperar a pessoa responsável retornar, por causa do meu trabalho. Hoje não tenho mais dreads, mas o preconceito continua latente em diversos momentos e lugares, até mesmo ao usar um banheiro público. A vida segue seu rumo e caminhar nem sempre é tão fácil, tão florido e colorido para quem tem um caráter definido e autêntico, diferente da hipocrisia e da máscara que a sociedade insiste em preconizar."

  • Arquivo pessoal

    Geander Barbosa, 26, cientista social, de Araraquara (SP)

    "Sou negro, gay, e acho que o racismo no Brasil é tão bem construído que muitos acreditam que ele não existe. A grande e triste notícia é que, sim, ele existe. E pior: está presente e faz parte da estrutura de nossa sociedade e podemos notá-lo em diferentes esferas sociais. De forma velada e viva, ele pulsa na nossa sociedade. O que noto aqui na minha cidade é que muita gente ainda tem uma concepção errônea do corpo negro e gay. É como se fôssemos objetos de fetiche constantes para algumas pessoas. Alguns gays, inclusive, aproximam-se por causa das tais 'coxas grossas', pelo 'bumbum avantajado'. Quando não, o contato é pautado pelo imaginário popular da virilidade: 'E aí, quantos centímetros?'. Essa frase é de matar. Contudo, é importante mencionar que há quem diga: 'desculpe, cara, eu não curto caras negros'. Escuto sempre essas coisas. O simples fato de haver um fora pelo quesito étnico é algo a ser pensado. De modo geral, minorias são tachadas como subalternas e periféricas e essas concepções permeiam várias facetas cotidianas, como, por exemplos, nas piadas sobre gays, negros, gordos e por aí vai."

  • Edson Lopes Jr./UOL

    Olga Souza Eugenio, 34, formada em gestão financeira, de São Paulo

    "Já passei por muitos constrangimentos que podem ser considerados discriminatórios, mas alguns me marcaram mais. Meus pais sempre tiveram boas condições financeiras e puderam me proporcionar um bom estudo em ótimas escolas particulares de São Paulo. Minha mãe era advogada e meu pai, motorista particular e taxista. Quanto estava na 6ª série, com então uns 11 ou 12 anos, fui fazer um trabalho na casa de uma colega. Tudo transcorreu normalmente. No dia seguinte, a menina me chamou e disse que eu não poderia fazer parte do grupo nem frequentar a sua casa, pois, segundo a sua mãe, eu era preta. Tenho um buldogue inglês e, certa vez, estava passeando com ele pelo bairro quando uma senhora perguntou: "Você sabe onde a sua patroa o comprou?". Fiquei em choque, mas não pelo fato de ela ter achado que eu era empregada de alguém. As pessoas sempre associam as mulheres negras à profissão de doméstica, mas a questão não é essa. Eu me ofendi por ela pensar isso porque sou negra e tenho um cachorro que custa uns R$ 5.000. Recuperada, muito educadamente, disse que o cachorro era meu, que morava no bairro há anos e que ela precisava rever os conceitos dela urgentemente. Muitas outras coisas aconteceram, como na vez em que reclamei na lanchonete da escola que o meu lanche estava errado e a atendente respondeu: "Além de preta, é exigente!". A mulher negra incomoda quando luta por direitos. É difícil mesmo aceitar que meu filho, 20 anos depois, enfrente o mesmo preconceito e dificuldades que eu."

  • Arquivo pessoal

    Cler Oliveira, 40, Jornalista e escritora, de Novo Hamburgo (RS)

    "Costumo dizer que tenho um bufê de características que me colocam no topo dos preconceituosos: negra, gorda, rocker, com uma diferença de comprimento em uma perna devido a uma cirurgia por desgaste no quadril, solteira sem filhos aos 39 anos e morando com a família. Para ter uma ideia, quando comentei que iria viajar sozinha em setembro, a primeira coisa que me perguntaram foi: 'Que graça tem viajar sem alguém?'. Já percebeu que pessoas gordas e de outras etnias não viajam, segundo as fotos das agências de viagem? Também já sofri preconceito em shows de rock. Ironizaram que ali não era casa de pagode nem terreiro, e que eu estava ali para limpar o chão. Na adolescência, deixei de conseguir empregos em lojas e escritórios onde minhas amigas trabalhavam por ser negra. E, ainda, tive de ouvir de um amigo que um sujeito, amigo dele, não quis namorar comigo, embora tivesse me achado muito legal, porque sou gorda. Nasci sofrendo preconceito, o que significa que tive, no mínimo, quatro décadas para mostrar que, de fato, não dou a mínima para o que pensam hoje de mim. E isso incomoda as pessoas."