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'Preconceito é maior obstáculo ao fim da epidemia de Aids'

Embora os testes e o tratamento estejam disponíveis, muitos continuam sem acesso por causa do estigma - Getty Images
Embora os testes e o tratamento estejam disponíveis, muitos continuam sem acesso por causa do estigma Imagem: Getty Images

24/11/2015 18h15



A revelação do ator Charlie Sheen, que admitiu ser HIV positivo, reanimou o debate a respeito do vírus, que ataca o sistema imunológico do corpo e pode levar ao desenvolvimento da Aids – doença que ainda carrega forte carga de preconceito, três décadas depois do início da epidemia.

Para o vice-coordenador do Programa de Aids das Nações Unidas (Unaids), o brasileiro Luiz Loures, o maior obstáculo hoje ao fim da epidemia é justamente a discriminação. Segundo ele, embora os testes e o tratamento estejam disponíveis, muita gente continua sem acesso a eles por causa do estigma e do preconceito.

Um novo relatório divulgado nesta terça-feira pelo Unaids revela que os grupos mais duramente atingidos pela doença são justamente os que sofrem mais discriminação: as mulheres e meninas da África, as trabalhadoras do sexo da Ásia, os usuários de drogas injetáveis do leste da Europa e os gays do mundo todo.

"Não vamos conseguir vencer a Aids apenas com comprimidos", afirmou Loures. "Precisamos voltar a falar sobre a doença."

BBC Brasil -O que o novo relatório da Unaids apresenta?

Luiz Loures -Este relatório é diferente, traz uma narrativa nova para a epidemia, chama a atenção para as epidemias locais para tentarmos entender melhor os contextos específicos.

É o caso, por exemplo, da epidemia no Sul do Brasil, ligada aos usuários de drogas injetáveis. Se essas realidades não são conhecidas, é nesses locais que a epidemia pode voltar a crescer. Temos que ser capazes de captar essas diferentes dinâmicas.

A Aids hoje vive uma situação única: temos a ciência e os instrumentos para acabar com a epidemia, mas nem todos se beneficiam da mesma forma deles. Por isso, apesar de termos todos os instrumentos, a epidemia cresce em alguns lugares e vemos o risco de intensificação da epidemia, a despeito de todos os avanços.

BBC Brasil - O preconceito às populações mais vulneráveis ainda é um problema?

Loures -Sim, exatamente. Progredimos muito do ponto de vista biomédico, do acesso ao tratamento. Hoje, temos 16 milhões de pessoas em tratamento, quando o nosso objetivo até o fim deste ano era ter 15 milhões de pessoas em tratamento. Mas não conseguimos avançar em questões fundamentais, como a discriminação em serviços de saúde.

BBC Brasil - Ainda há muita discriminação nos hospitais? Isso acontece no mundo todo ou apenas nos países mais pobres?

Loures -No mundo todo. É como se estivéssemos na época pré-tratamento. Quando perguntamos para pessoas das populações consideradas mais vulneráveis (homens gays, usuários de drogas, trabalhadoras do sexo) é quase unânime reclamarem da discriminação nos serviços de saúde. E isso em qualquer lugar do mundo, mesmo nos países desenvolvidos.

É um absurdo que depois de três décadas de epidemia, a discriminação persista inalterada nos serviços de saúde. Parece a época em que eu atendia soropositivos e não conseguia sair do hospital porque os meus colegas se recusavam a por a mão nos meus pacientes. Essa atitude negativa em relação ao HIV persiste na sociedade.

BBC Brasil - A discriminação impede, por exemplo, que mais pessoas sejam testadas?

Loures -Sim, claro. Hoje, temos 16 milhões de soropositivos em tratamento. Mas temos 22 milhões de pessoas que não recebem os remédios, embora eles estejam disponíveis. Mais de 50% dessas pessoas não sabem que têm o vírus. O teste é um ponto fundamental. Precisamos fazer com que essas pessoas tenham acesso ao teste.

E um dos maiores entraves a esse acesso é o serviço de saúde discriminatório. Temos que desenvolver estratégias para levar esse teste para onde as pessoas estão: no trabalho, nas escolas.

BBC Brasil - O senhor acha que houve uma resposta negativa, por exemplo, ao ator Charlie Sheen que, na semana passada, revelou ser soropositivo?

Loures -Sim, parece que estamos vivendo de novo nos anos 1980. Na verdade, a reação da imprensa americana foi pior do que o que víamos nos anos 1980. A resposta de muitos colegas dele foi preconceituosa. Esse episódio mostra de uma forma muito clara que a discriminação está mais viva do que nunca, que não avançamos muito nesse campo.

BBC Brasil - Houve muitos avanços nos últimos anos em relação aos direitos dos homossexuais, por exemplo. Vários países aprovaram o casamento gay. A sensação que se tem é de que avançamos, sim, nessa questão do preconceito. Por que é diferente com a Aids?

Loures -Bem, é um vírus, não vamos diminuir a importância disso. Sei que avançamos muito em algumas áreas de discriminação, mas em relação ao HIV isso não ocorreu. Vejo de forma positiva a questão do casamento igualitário. Mas não falamos mais sobre o HIV como falávamos no passado. Então, há um avanço contra a discriminação, mas é um avanço seletivo. Precisamos voltar a falar sobre a epidemia.

BBC Brasil - Com todos os avanços, ainda é uma epidemia muito grave...

Loures -Sim, a Aids é a principal causa de morte entre mulheres em idade reprodutiva no mundo. É a primeira causa de morte entre adolescentes na África Subsaariana – a segunda no mundo. E a discriminação é um grande problema. Por exemplo, na África, o número de meninas infectadas é muito maior que o de meninos. Isso não é uma questão biológica. É uma questão de gênero. São 5 mil meninas infectadas por semana na África Subsaariana. Se não discutirmos o papel de predador dos homens em relação às mulheres, por exemplo, não vamos resolver o problema. Não é só com comprimido que eu vou resolver a questão. Não somente.

BBC Brasil - Mas por que a questão da discriminação chama mais atenção agora?

Loures -Fica mais evidente justamente porque determina os grupos que ficaram para trás: as mulheres jovens na África, as trabalhadoras sexuais na Ásia, os usuários de drogas na Europa do leste. Os homens gays no mundo todo.