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Assumir-se gay após levar uma vida hétero é mais difícil; leia histórias

Alessandra Lima ao lado das filhas Louise (à esquerda) e Alessandra (à direita), que a apoiaram depois que ela decidiu assumir o namoro com uma mulher - Arquivo pessoal
Alessandra Lima ao lado das filhas Louise (à esquerda) e Alessandra (à direita), que a apoiaram depois que ela decidiu assumir o namoro com uma mulher Imagem: Arquivo pessoal

Yannik D´Elboux

Do UOL, no Rio de Janeiro

19/02/2014 07h04

Antes de namorar uma mulher, a microempresária mineira Alessandra Lima, 39 anos, foi casada por duas vezes e teve três filhos. O engenheiro carioca Pedro (nome fictício), 47 anos, passou 15 anos vivendo com uma mulher, casamento que gerou dois filhos, antes de assumir que era gay. Essas não são histórias de novela, são dramas reais. Mesmo depois de levar uma vida heterossexual, é possível descobrir ou assumir a homossexualidade. Porém, na maioria das vezes, contar a verdade para a família costuma ser um processo doloroso.

Quando se ouve casos como esses, a primeira pergunta que surge é: se são gays, por que se envolveram em relacionamentos heterossexuais? Não existe uma resposta simples ou única para essa questão. Segundo a psicóloga Vera Moris, professora e pesquisadora da PUC- SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) a homoafetividade não tem data certa para se mostrar. "Depende de cada um. A maioria manifesta sua homossexualidade na adolescência, porém, em alguns, isso acontece mais tardiamente", explica.

Uma das razões para que a orientação sexual se revele somente na idade adulta consiste na dificuldade de autoaceitação. Esse é um dos problemas comuns entre os cerca de 50 integrantes do Homopater, grupo de apoio e orientação a homens e pais em relacionamentos homoafetivos, criado por Vera a partir de sua tese de doutorado sobre paternidade homoafetiva. "A maioria não se entendia como homossexual desde a adolescência. Alguns demoram a perceber ou a se reconhecer como homossexuais", fala Vera.

Pedro, que há quatro anos descobriu o Homopater, logo depois de sua separação, enfrentou parte do problema. Ele diz que sempre soube que era gay, mas não aceitava essa situação em hipótese alguma. "Ficava o tempo todo tentando me convencer de que eu não era", conta. E isso durou vários anos. O engenheiro só transou com outro homem pela primeira vez aos 38. Ainda assim, permaneceu casado por mais cinco anos.

O processo entre contar para a mulher e tentar resolver a situação costuma mesmo ser longo, podendo levar de cinco a seis anos, segundo Vera Moris. "Às vezes, a mulher fica iludida, acha que vai passar, que a família e os filhos vão fazer com que o marido desista, como se isso fosse uma opção, uma escolha".

A forma negativa como a sociedade vê e trata os gays, apesar das transformações que vêm ocorrendo, é outro motivo que faz com que alguns reneguem a própria sexualidade por décadas. Os estereótipos e a falta de modelos com os quais se identificar também atrapalham. "Só fui entender que um gay não precisava ser necessariamente uma mocinha ou desfilar no baile de carnaval com a bunda de fora com quase 30 anos de idade", afirma o engenheiro carioca.

Brigas e sofrimento

Ao contrário do que muitos pensam, a identidade sexual está mais ligada ao afeto do que à sexualidade. São a paixão e o amor por alguém do mesmo sexo que levam a pessoa a assumir sua homossexualidade. E não é nada fácil admitir essa nova identidade para a família, depois de anos vivendo como heterossexual.

Para Alessandra, o sofrimento durou pelo menos dois anos. Apesar de já estar separada do ex-marido quando se apaixonou por uma mulher, ele não recebeu bem a notícia e, segundo ela, queria a guarda das filhas. "Minha vida virou um inferno. De um dia para o outro, eu já não era mais considerada uma boa mãe", diz a microempresária.

A advogada Maria Berenice Dias, especializada em Direito Homoafetivo, presidente da Comissão Especial da Diversidade Sexual do Conselho Federal da OAB, explica que existe, de maneira recorrente, a tentativa de tirar a guarda dos filhos, de impedir as visitas, como forma de punição. Antigamente, por causa do conservadorismo, a orientação sexual do cônjuge influenciava nas decisões da Justiça, o que já não tem o mesmo peso nos dias de hoje.

Berenice também nota que é frequente, nos divórcios em razão da homossexualidade do cônjuge, um sentimento de raiva ainda maior do que nas outras separações. "A explicação é porque nessa situação não se pode competir, é um sentimento muito grande de ter sido enganado", diz.

Alessandra teve de enfrentar, também, a revolta da mãe e das irmãs, que não aceitavam sua namorada. "Minha mãe levou um choque, brigou muito comigo”, recorda. Apesar de todas as dificuldades, hoje a família convive em paz, com exceção do ex-marido.

Pedro não precisou passar pelo mesmo sofrimento, graças a uma ex-mulher bastante compreensiva, que sempre o apoiou e nunca quis afastá-lo dos filhos. Nem por isso a decisão de terminar o casamento de 15 anos foi mais simples. "Foi uma das coisas mais difíceis da minha vida. Você muda tudo, entra em outro ambiente social, as pessoas começam a vê-lo de outra forma. No começo, foi muito difícil", conta.

Fazer terapia e participar do Homopater ajudou o engenheiro a passar por essa transição. "Você sente que é o único homem do universo que é gay e tem filhos. O grupo me ajudou porque me fez conhecer pessoas vivendo situações semelhantes", relata. Apesar de ter a certeza de que escolheu o caminho certo, o engenheiro sente saudade do que deixou pra trás. "Eu gostava muito de estar casado com ela, que sempre foi companheira. Era um casamento legal, muito acima da média, do qual sinto falta até hoje".

Contar para os filhos

Se abrir o jogo para o marido ou a mulher é complicado, contar para os filhos sobre a homossexualidade costuma ser ainda mais delicado. O medo de ser incompreendido ou rejeitado faz com que esse momento seja adiado. Entretanto, a psicóloga Vera Moris acredita que a revelação deve acontecer o quanto antes. "Quanto menos segredo, melhor. Quanto mais nova a criança souber, melhor para o seu desenvolvimento. Na adolescência, é sempre mais difícil falar".

Apesar dos problemas que teve com a família, a microempresária mineira sempre contou com a compreensão das filhas, atualmente com 18 e 17 anos. "O único receio que sempre tive era de que minhas filhas sofressem, mas elas sempre me apoiaram muito e aceitaram tudo muito bem", diz Alessandra.

A estratégia de Pedro para explicar sua situação para os filhos, uma menina de 15 anos e um garoto de 9 anos, é não esconder nada, expor sua vida com o companheiro e esperar que as perguntas apareçam. Porém sua ideia ainda não surtiu efeito, mesmo após três anos e meio de relacionamento. Eles viajaram todos juntos no ano passado para a Disney, as crianças frequentam sua casa, onde há três meses ele mora com o namorado,dormindo no mesmo quarto. Contudo, as esperadas perguntas não surgem.

"Vou ter que sentar com os dois e conversar. Quero resolver isso logo. Mas eles convivem com meu namorado há três anos e meio", diz ele, ainda admirado de as crianças não terem tocado no assunto.

Libertação e felicidade


Quem finge ser o que não é cria uma prisão para si mesmo. Sair dela não é fácil, mas parece ser um caminho inevitável, mesmo que demore muitos anos. "Não acho que as pessoas mudam, elas simplesmente são. Alguns homossexuais resolvem casar para atender a sociedade, para ter uma família e vão se mantendo até que se dão conta que não vale a pena. Tenho um cliente homossexual que ficou casado com uma mulher por 40 anos", exemplifica a advogada Maria Berenice.

Para o engenheiro carioca, a vida ficou melhor depois que resolveu assumir sua verdadeira orientação sexual. “Estou muito mais feliz hoje”. Ele e seu namorado convivem em harmonia com a ex-mulher e sua família. Entretanto, Pedro ainda sente alguns problemas de aceitação e um pouco de desconforto na relação com certos amigos. "Ninguém nomeia, ninguém diz 'seu namorado', 'seu companheiro'. Quando me convidam para sair, falam: 'vá você com ele', explica o engenheiro. 

Alessandra também se considera mais feliz em vários aspectos. Além de estar apaixonada novamente, ela conta que só foi se sentir mulher de verdade, inclusive sexualmente, quando se relacionou com outra mulher. "Parecia que eu tinha descoberto o sexo ali, foi uma coisa muito intensa".

Apesar disso, a microempresária diz que nunca havia sentido atração por mulheres antes dos 35 anos, depois de sua separação, quando teve a primeira namorada. "A gente é orientada a uma única forma de amor, que é entre o príncipe e a princesa. Mas, às vezes, o príncipe é uma princesa. Não aconteceu isso comigo por causa de uma decepção amorosa com um homem", declara, já respondendo antecipadamente a uma pergunta que costuma ouvir com frequência.

Para as novas configurações familiares que estão surgindo, em decorrência da diversidade sexual, a legislação começa a oferecer alternativas. Há casos no Brasil de pluriparentalidade, ou seja, em que a lei reconhece mais de um pai ou uma mãe para uma mesma criança. Na tentativa de fazer avançar a legislação, a advogada Maria Berenice coordena a proposta do Estatuto da Diversidade Sexual, lei de iniciativa popular para assegurar os direitos da população LGBT.