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Criança dá sinais quando é maltratada pelo padrasto ou madrasta

Quando a criança faz de tudo para não ficar em casa, ela pode estar sofrendo alguma violência - Getty Images
Quando a criança faz de tudo para não ficar em casa, ela pode estar sofrendo alguma violência Imagem: Getty Images

Yannik D´Elboux

Do UOL, no Rio de Janeiro

26/02/2014 14h17

Com tantas notícias sobre a violência praticada por padrastos e madrastas contra crianças e adolescentes, surge o receio de estar abrigando o inimigo na própria casa. Por mais improvável que possa parecer, nem sempre o pai ou a mãe percebe os maus tratos que o filho recebe do novo cônjuge.

"Infelizmente, na maioria das vezes, os pais não enxergam ou não aceitam. Frequentemente, o Conselho Tutelar intervém por meio de denúncias de vizinhos ou parentes. O pior momento é a hora conversar com os pais. E  o que é mais triste: eles culpam a criança", relata Sônia Onofre da Silva, vice-presidente do Conselho Tutelar de Arapongas (PR), que lida diariamente com conflitos familiares e situações de risco.

A violência pode ser física, psicológica, sexual ou envolver negligência. Cada forma de agressão é capaz de produzir sintomas diferentes. Entretanto, existem sinais de alerta que costumam se repetir.

"Geralmente, crianças que sofreram violência podem apresentar mudança de comportamento (ficando mais retraídas ou mais agressivas) e retrocesso em seu desenvolvimento", explica Laura Cristina Eiras Coelho Soares, doutora e mestre em Psicologia Social pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), autora de duas teses acerca de famílias recasadas e seus desafios.

Fazer birra para comer além do normal, emburrar por qualquer motivo ou tornar-se uma criança triste são algumas das mudanças que Sônia Onofre observa nos casos de abuso. Além disso, a conselheira destaca que é importante notar quando o filho pede a todo momento para dormir na casa da avó, da tia, do amigo ou só quer ficar na rua. "Quando a criança começa a não se sentir bem dentro de casa é o alerta de que algo errado está acontecendo".

Se existe uma relação conflituosa ou incômoda, é comum a criança se retirar do ambiente ou mudar de lugar quando o padrasto ou a madrasta se aproxima. Filhos que param de brincar ou não demonstram mais prazer em estar com a família também devem ser atentamente observados, diz Sônia.

Apesar de servirem de sinais de alerta, a presença desses sintomas não é suficiente para determinar a existência de maus tratos. Segundo Laura Soares, acompanhar a criança de perto continua sendo a melhor forma de perceber se há algum problema.

"Estar próximo do filho, atento às mudanças de comportamento e estabelecer uma relação de confiança e amplo diálogo auxilia nessa percepção, mas não será garantia de que seu filho não sofrerá violência. Os pais podem buscar ajuda profissional caso observem essas alterações, pois não necessariamente serão decorrentes de violência", diz a psicóloga.

Omissão e violência

Em alguns casos, os pais estão até cientes dos abusos ou agressões, mas se omitem. O auxiliar administrativo M. F., 27 anos, conviveu com isso durante toda sua infância e adolescência. Ele perdeu a mãe, morta durante seu parto, e foi criado pelo pai e a madrasta, com os quais mora até hoje na Grande São Paulo.

"Ela sempre nos ofendeu, nos chamando de egoístas, pessoas ruins, falava que não éramos filhos dela. E meu pai nunca nos defendeu. Ele sempre foi ausente, trabalhava muito", conta. M.F. diz que o pai talvez temesse ficar só e ter de assumir toda a responsabilidade com os cuidados dos quatro filhos, que já tinha quando se casou pela segunda vez.

O auxiliar administrativo afirma que nunca recebeu carinho nem atenção tanto da madrasta quanto do pai. "Desde os 7 ou 8 anos, acordávamos sozinhos para ir à escola. A gente se trocava e meu pai abria o portão", relembra. Atualmente, mesmo dividindo o mesmo espaço, ele evita ao máximo qualquer contato com a madrasta. “Não olho na cara dela. Não aceito mais humilhações e respondo todas as ofensas", relata M.F., que planeja se mudar assim que melhorar sua condição financeira.

“A criança não aceita gritos e grosserias, principalmente de alguém que não é mãe ou pai dela, e vai guardando aquilo e se revoltando. E, às vezes, no momento da ira, bota isso para fora de forma descontrolada, criando um risco para ela e para as pessoas com quem convive. A violência acaba gerando uma violência maior", explica Sônia, que cita o caso de um menino de dez anos que acabou matando a madrasta em janeiro deste ano.

"Essa criança ainda está em estudo psicológico, mas não tenho dúvida de que esse menino viu violência ou foi violentado. Foi uma forma de ele se defender que acabou em tragédia. Jamais uma criança tem intenção de matar", analisa a vice-presidente do Conselho Tutelar de Arapongas. O garoto era vítima de agressões físicas e verbais da madrasta, que momentos antes do crime, o repreendeu com xingamentos e tapas.

Ninguém deve substituir os pais

"É importante que os pais percebam que os lugares ocupados pelo padrasto ou pela madrasta não são substitutivos aos seus. Com isso, eles poderão propiciar um campo familiar menos conflitivo e possibilitar que os filhos estabeleçam laços de afeto com o novo membro da casa", fala a psicóloga Laura Soares.

Na prática, nem sempre é fácil diferenciar os papéis dos pais e dos padrastos e madrastas na vida dos filhos. Muitas vezes, os limites são tênues e acabam sendo cruzados sem querer, mesmo que exista bastante amor e afeto, como aconteceu com a advogada e consultora Mariana Bacchin Afonso, 30 anos, de São Paulo (SP). Ela assumiu tanto o papel de mãe do enteado, desde levá-lo ao dentista, corrigir a lição até dar bronca, que acabou esperando dele mais do que o menino poderia lhe dar em troca.

"Esperava que ele tivesse um comportamento de filho. E isso não aconteceu, não ia acontecer. Afinal de contas, mesmo morando com a gente, ele tinha mãe, uma figura presente, que sempre teve e sempre vai ter um papel de protagonista na vida dele. E ser coadjuvante nunca é fácil", admite.

Apesar das dificuldades iniciais, Mariana conseguiu administrar melhor suas expectativas, com a ajuda de terapia, e entende que as reações do enteado e do próprio filho sempre serão diferentes.

"Hoje, levo a vida mais leve. Faço tudo como se fosse mãe, sei que um dia vou olhar pra trás e ter a sensação de que dei meu melhor, de que meu filho vai saber que o irmão foi muito bem cuidado por mim. E quem sabe meu enteado também entenda toda a nossa história e eu ganhe o Oscar de coadjuvante da vida dele", brinca.

A figura da madrasta carrega ainda um forte estigma negativo, perpetuado pelas histórias infantis. Porém isso não acontece apenas com a madrasta, conforme Laura Soares observou em seus estudos, a família recasada como um todo ainda sofre preconceito, até mesmo entre seus próprios integrantes. Apesar do aumento dos casos de divórcio, as pessoas continuam presas ao modelo de família nuclear (pai, mãe e filhos) como exemplo a ser alcançado.

“As fábulas retratam nossa dificuldade enquanto sociedade de pensarmos em outros formatos familiares como igualmente propícios para o bem-estar das crianças, assim como de buscarmos novos lugares para o padrasto e a madrasta que não em substituição ao pai e a mãe”, analisa a pesquisadora.

Mariana conta que o filho, de 4 anos de idade, já começou a relacionar o seu papel na vida do irmão ao da personagem Malévola e da madrasta da Cinderela, fato que a incomoda. "Acho que está na hora da Disney se redimir e fazer, finalmente, um filme com uma madrasta boa, heroína, que salva o dia. Afinal, não sou a única que tenta fazer essa nova organização de família virar um conto de fadas atual”, diz a advogada paulista.