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'Mães de abrigo' cuidam de crianças como se fossem filhos

Ligia Gonçalves dos Santos com as crianças do Abrigo 4 da Liga Solidária, em São Paulo (SP) - Leonardo Soares/UOL
Ligia Gonçalves dos Santos com as crianças do Abrigo 4 da Liga Solidária, em São Paulo (SP) Imagem: Leonardo Soares/UOL

Yannik D'Elboux

Do UOL, no Rio de Janeiro

09/07/2014 07h48

No Brasil, segundo dados do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), existem cerca de 37 mil crianças em serviços de acolhimento, ou seja, que vivem em abrigos como medida de proteção, conforme levantamento de 2013. São vítimas de negligência, abandono, violência física e psicológica da parte de quem deveria protegê-las. Muitas crianças e adolescentes também estão nessa situação por causa da dependência química dos pais ou responsáveis, que se tornam incapazes de cumprir seu papel.

Quando são encaminhados para os abrigos, por meio de medida judicial, tanto os pequenos quanto os jovens, apresentam um estado emocional bastante fragilizado. "A criança já chega muito assustada porque vem de um ambiente familiar conturbado. Precisa muito da sensibilidade de quem faz esse trabalho para que ela se sinta acolhida", diz a promotora de Justiça Daniela Moreira da Rocha Vasconcellos, da 3ª Promotoria da Infância e Juventude do Rio de Janeiro. No Estado do Rio de Janeiro, até o fim de junho havia 2.437 acolhidos com idade entre 0 e 17 anos e 11 meses.

O fundamental no trabalho de quem recebe essas crianças é prover carinho. “Essas pessoas têm um papel importantíssimo no desenvolvimento da afetividade para que elas não criem traumas com a família de origem nem com o abrigo”, afirma Miriam Maria José dos Santos, presidente do Conanda.

A coordenadora de projetos sociais do Abrigo 4 da Liga Solidária, Ligia Gonçalves dos Santos, sabe bem da necessidade do afeto para o bem-estar das crianças e dos jovens. “A gente cuida como se fosse um filho”, diz ela, que já está há 11 anos na entidade, localizada no Jardim Rosa Maria, em São Paulo (SP), onde começou como educadora.

Ligia conta que, apesar de todo o carinho dedicado, o primeiro contato costuma ser difícil. A coordenadora explica que é preciso conquistar a confiança aos poucos. “Essas crianças já vêm com uma proteção interna. Porque as pessoas passam pela vida delas e acabam deixando-as. Até construir essa confiança leva tempo”, esclarece.

Aline Peçanha segura um bebê acolhido na URS (Unidade de Reinserção Social) Ana Carolina, no Rio de Janeiro (RJ) - Victor Santos/Divulgação - Victor Santos/Divulgação
Aline Peçanha segura bebê acolhido na URS Ana Carolina, no Rio de Janeiro (RJ)
Imagem: Victor Santos/Divulgação

Vínculo e apego

Ao contrário do que o senso comum pode apontar, mesmo que a estada dessas crianças seja temporária nos abrigos, estimula-se a formação de vínculos entre os abrigados e seus cuidadores, quase sempre mulheres. “A gente precisa se envolver com as crianças. É permitido chorar, se apegar. Porque se a gente não se apega, não se envolve, não cuida de verdade”, diz Aline Peçanha, diretora da URS (Unidade de Reinserção Social) Ana Carolina, na zona norte do Rio de Janeiro (RJ).

“Se a pessoa não cria o vínculo, o trabalho fica frio. Mas é importante saber a dosagem desse vínculo, separando os papéis”, observa Daniela Vasconcellos. A promotora também chama atenção para a necessidade de capacitação das cuidadoras e até mesmo de atendimento voltado para elas também. “Não é fácil lidar com a dor do outro, principalmente quando esse outro é uma criança”, justifica.

Para a presidente do Conanda, o afeto e a formação de laços contribui para a convivência. “Se elas foram tiradas do lar de origem é porque houve a quebra de um vínculo. Dentro do abrigo, é essencial retornar com essa afetividade porque senão a criança vai ser problemática para o resto da vida, não vai saber conviver”, destaca Miriam dos Santos.

Histórias e dedicação

A coordenadora do Abrigo 4 da Liga Solidária acredita que seu trabalho está mais para vocação do que profissão. Ligia dos Santos conta que sua prática vai muito além das horas que passa na instituição. As histórias e os problemas das crianças a acompanham mesmo depois quando vai para casa cuidar dos seus afazeres e da rotina de seus filhos trigêmeos, de 15 anos.

Em mais de uma década de experiência, alguns casos são difíceis de esquecer. Para Ligia, um dos episódios mais marcantes foi a chegada do primeiro bebê ao abrigo. “A casa toda se preparou para a chegada desse bebê, decoramos o quarto, compramos mamadeira”, recorda.

Apesar dos esforços da equipe, não foi possível reintegrar a criança à família de origem nem devolvê-la para a mãe, prostituta e usuária de drogas. Judicialmente, ficou definido que o bebê iria junto com um irmão de 3 anos de idade viver com uma tia no Rio Grande do Sul.

“As crianças seriam levadas para o Rio Grande do Sul com os oficiais de justiça, sem vínculo com as crianças. Eu me coloquei à disposição para levá-las”, conta Ligia, que, mesmo sem ter essa responsabilidade, resolveu acompanhá-las em uma viagem de dois dias de ônibus.

A URS Ana Carolina costuma receber uma grande quantidade de bebês. A maioria abandonada já na maternidade pelas mães viciadas em crack. Porém, para a diretora da unidade, os casos mais complicados de esquecer são os das crianças que chegam ao abrigo um pouco maiores. “Acho mais difícil porque eles conviveram um período com os pais”, explica.

Aline Peçanha lembra da história de um menino de 3 anos de idade que a marcou muito. “Eu ia para casa pensando nele”, conta. O garoto foi acusado pela família de matar o irmão de 1 ano de idade. Ele estava em casa apenas com os irmãos pequenos quando o fogão caiu em cima dele e do menino de 1 ano, que morreu no incidente. “Ele foi acusado pela mãe e pela família inteira como se fosse um assassino. Quando chegou aqui, ele reproduzia isso, não chegava perto de ninguém, era bruto”, diz.

Com paciência e carinho, Aline conseguiu fazê-lo, finalmente, voltar a sorrir e brincar. “Eu dizia para ele que o amava, que ele não precisava fazer isso [agir agressivamente] para chamar atenção”, conta. Quando a mãe foi visitá-lo, o garoto tentou empurrar todos os gaveteiros atrás da porta para que ela não entrasse. Ele acabou indo morar com a bisavó.

Bebê acolhido na URS (Unidade de Reinserção Social) Ana Carolina, no Rio de Janeiro (RJ) - Victor Santos/Divulgação - Victor Santos/Divulgação
Bebê acolhido na URS Ana Carolina, no Rio de Janeiro (RJ)
Imagem: Victor Santos/Divulgação

Separação

Atualmente, para que os abrigos assemelhem-se o máximo possível a um lar comum, o número de crianças acolhidas costuma não ser superior a 20. O objetivo principal dessas instituições é trabalhar para que os abrigados voltem à família de origem, sejam reinseridos na família extensa ou encaminhados para adoção no menor tempo possível. "O melhor lugar para uma criança é na família, mas não pode ser qualquer uma, tem que ser numa família saudável, equilibrada”, afirma Miriam dos Santos.

No caso dos bebês, o encaminhamento, geralmente, é mais ágil. Na URS Ana Carolina esse processo não leva mais do que seis meses. Segundo a promotora Daniela Vasconcellos, praticamente 80% dos recém-nascidos vão para a família adotiva, já que grande parte das mães são dependentes de drogas. “O índice de retorno para a família de origem é muito baixo”, diz.

A partir do momento que a criança entra no serviço de acolhimento, toda equipe trabalha para que ela seja reinserida no ambiente familiar e precisa estar pronta para a separação, apesar dos laços afetivos que se criaram. “O importante é que esse profissional saiba que esse é um trabalho provisório. Ele tem que estar sempre preparando a criança para sair”, reforça a presidente do Conanda.

Tanto Ligia quanto Aline dizem que o sentimento é de alegria quando a criança retorna para casa ou ganha um novo lar. “Muitos mantêm contato, alguns pais enviam fotos e trazem as crianças para nos visitar”, conta Ligia.