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Reconhecer a própria agressividade ajuda a conter a disseminação do ódio

"O trânsito é o palco por onde desfila nossa boçalidade", diz historiador - Thinkstock
"O trânsito é o palco por onde desfila nossa boçalidade", diz historiador Imagem: Thinkstock

Marina Oliveira e Suzel Tunes

Do UOL, em São Paulo

29/08/2014 07h48

O Conselho Nacional do Ministério Público divulgou dados alarmantes, em 2012: homicídios cometidos por impulso ou por motivos fúteis representaram 100% do total de assassinatos com causas identificadas registrados no Acre, entre 2011 e 2012. No mesmo período, em São Paulo e Santa Catarina, esse índice ficou acima de 80%.

Na categoria, entram crimes que começam com uma simples briga, motivada por conflitos entre vizinhos, desavenças, ciúmes e desentendimentos no trânsito. Em 2014, os casos de linchamento por suspeita de crime aconteceram em diferentes estados brasileiros. E, nas redes sociais, as declarações de ódio crescem e se espalham continuamente.

Mas o que leva um povo internacionalmente reconhecido como cordial e pacífico a agir motivado pela raiva? A resposta talvez esteja na própria questão. Afinal, a definição de cordialidade nada mais é do que agir com o coração. E ter as emoções à flor da pele também significa se deixar levar do amor ao ódio, em poucos segundos –basta lembrar dos crimes passionais.

E, ainda que esses dados sejam recentes, a história do país mostra que não fomos sempre um povo 100% pacífico. “O Brasil tenta jogar para debaixo do tapete a sua brutalidade. Mas é importante lembrar da nossa história violenta contra os índios e negros, do tempo do cangaço e das nossas guerras civis, que preferimos chamar de outro nome, como revolta ou insurreição”, afirma o doutor em filosofia Gerson Leite de Moraes, professor de Ética da Universidade Presbiteriana Mackenzie Campinas $escape.getHash()uolbr_quizEmbed('http://mulher.uol.com.br/comportamento/quiz/2012/07/13/voce-e-vingativo-justo-ou-resignado.htm')

Ao ignorar a própria natureza agressiva, mascaramos a contribuição individual para o caos. Quem se vê como alguém pacífico, cercado de pessoas violentas, conclui que o problema está no outro e não em si.

“Incluir-se no mundo é fundamental para criar consciência. O trânsito é, de longe, o palco por onde desfila nossa boçalidade e violência. Mas a culpa é sempre do outro: do caminhão, do ônibus, das motos, dos pedestres, dos ciclistas, dos bêbados. Ninguém diz: o trânsito é  ruim porque tem gente como eu circulando nas ruas”, afirma o historiador Leandro Karnal, professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas)

Assim, a violência é sempre definida pelo sujeito. Aquele que é agredido vai abrandar a própria reação, não menos violenta, como uma resposta justa de alguém que precisa se defender. É essa a perspectiva dos que argumentam que “bandido bom é bandido morto” e que preferem fazer justiça com as próprias mãos. Os envolvidos em linchamentos, por exemplo.

“Se nós trabalhássemos com uma ética mais geral, entenderíamos que, se é errado matar alguém, isso vale para o bandido e para o Estado. Sob essa perspectiva, o homicídio na rua é tão ilegal quanto dentro da prisão”, diz o historiador.

O valor atribuído à força

Pesa também o fato de que o ódio, no Brasil, é visto como uma característica que confere força e capacidade de ação, um ensinamento passado de geração em geração. Na nossa cultura, alguém que se revolta é frequentemente julgado como uma pessoa de atitude, diferente daqueles que agem com tolerância e que se abrem para o diálogo. Esses últimos podem até ser vistos como fracos, apesar de colocarem a razão acima da emoção.

Para o historiador Leandro Karnal, o peso histórico da escravidão colocou o chicote como um argumento estrutural na consciência coletiva. “O que torna a violência sedutora é que ela funciona, enquanto a razão só tem êxito se os dois lados estiverem jogando de acordo com as mesmas regras”, explica o especialista.

O descontentamento com o poder público, da mesma forma, aguça nas pessoas um ímpeto egoísta, uma tentativa de diminuir ou extinguir as violências que elas próprias poderão vir a sofrer futuramente. Aqueles que defendem a pena de morte, o porte de armas e a diminuição da maioridade penal, geralmente, compartilham esse sentimento.

“Onde não existe política e Estado, existe o despotismo e o egoísmo”, explica a filósofa Adriana Mattar Maamari, professora da Ufscar (Universidade Federal de São Carlos). “Nesse cenário, infelizmente, eclodem os piores movimentos, os mais insensatos e hostis aos próprios seres humanos, que opõem uns contra os outros. É a natureza humana tentando sobreviver em meio a tantas adversidades”, diz.

Violência gera violência

Outro ponto de atenção é que quanto menos se coíbe a violência, mais ela cresce. Por isso, responder a um ato de agressividade sem hostilidade talvez seja o maior dos desafios contemporâneos. “Fica mais fácil fazer isso se compreendermos que somos falhos e capazes de praticar maldades, tanto quanto qualquer outra pessoa. O outro agiu mal, mas você também poderia ter agido. Todos nós somos sublimes e infames”, afirma o filósofo Jorge Claudio Ribeiro, professor da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).

Nos pequenos atos, a cultura da violência se perpetua. “O discurso agressivo e o bullying, por exemplo, desencadeiam violências maiores, assim como os comentários raivosos nas redes sociais”, declara o professor de ética Gerson Leite de Moraes.

E como conter o próprio ódio em uma sociedade violenta, em que cada um reproduz o que aprendeu, ao longo dos anos? Para os especialistas, a educação ainda é a melhor saída. Tanto a adquirida nas escolas quanto a ensinada pelos pais, a aprendida em livros, debates e outras manifestações culturais.

“Na base da nossa violência está uma cegueira em relação ao outro. Por isso, defendo uma educação que dissemine a tolerância e indique que é bom que sejamos diferentes, do ponto de vista estético, sexual, social ou étnico. É preciso ensinar a solidariedade com o outro”, diz Karnal.