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"Império": João Lucas expõe os danos de ser o filho rejeitado

Daniel Rocha é João Lucas em "Império" - Divulgação/TV Globo
Daniel Rocha é João Lucas em "Império" Imagem: Divulgação/TV Globo

Heloísa Noronha

Do UOL, em São Paulo

02/10/2014 07h07

Desde o início da novela "Império", a dinâmica familiar do núcleo principal foi exposta ao público de uma maneira bem crua, sem nuances. José Pedro (Caio Blat), o primogênito, é o preferido da mãe, Maria Marta (Lilia Cabral); Maria Clara (Andréia Horta) ocupa o posto de “princesinha do papai”, José Alfredo (Alexandre Nero), e o caçula João Lucas (Daniel Rocha) sempre viveu à sombra dos irmãos. 

Carente de afeto, o rapaz tenta chamar a atenção através das confusões decorrentes de seu envolvimento com drogas, traficantes, brigas etc. O perfil problemático do personagem é um dos diversos resultados desastrosos que, na vida real, podem fazer parte da rotina de diversas crianças e adolescentes deixados de lado pelos pais, incapazes, às vezes, de notar ou corrigir a própria negligência. 
 
Os pais costumam dizer que amam e tratam os filhos do mesmo jeito. Na prática, não é bem assim que as coisas funcionam. Segundo especialistas, é normal que pais e mães tenham mais empatia por determinado filho e se relacionem melhor com ele. 
 
“Na nossa cultura, é feio admitir preferências. Só que os pais podem tê-las e, muitas vezes, têm mesmo. Mas o que realmente importa é que, apesar disso, sejam bons, justos e amáveis com todos os filhos”, comenta o psicólogo Aurélio Melo, professor de Psicologia do Desenvolvimento Humano na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo (SP). 
 

Para a psicóloga Cecilia Russo Troiano, de São Paulo (SP), autora do livro “Vida de Equilibrista – Dores e Delícias da Mãe que Trabalha” (Ed. Cultrix), é muito difícil mensurar o amor, mas é óbvio que os pais podem ter, naturalmente, maior facilidade ao se relacionar com um filho do que com outro. “Com aquele com quem é mais fácil dialogar, por exemplo. Isso reflete estilos diferentes e afinidade por assuntos comuns. Não quer dizer gostar mais ou menos”, afirma.

De acordo com Edith Rubinstein, coordenadora do Centro De Estudos Seminários de Psicopedagogia, de São Paulo (SP), desde a tenra idade, a criança compara o modo como ela e seus pares (irmãos, primos, amiguinhos) são tratados. 

“Um garoto pode dizer claramente a um dos pais: ‘você deu mais sorvete para meu irmão’. Poderá também sentir diferenças no trato da professora com algum colega. A comparação é uma forma inteligente de pensamento, e é inevitável. Porém, sentir-se deixado de lado é algo que causa sofrimento e deve ser evitado”, conta. 
 
É saudável perceber que existem diferenças, preferências e identificações entre as pessoas. Um filho também pode se identificar mais com um de seus progenitores sem que seu irmão sinta-se menos amado. Mas deixar de lado um filho é renegá-lo e isso tem, sim, efeitos nocivos. 
 
“São com os pais e/ou cuidadores nossas primeiras experiências amorosas. Não vivê-las pode trazer consequências difíceis de superação. Perceber e sentir-se amado prepara a criança para suportar desafios. Esse amor vem junto com as expectativas em relação ao filho, por isso a criança deixada de lado também não aposta em si mesma, sente-se insegura, preterida e desvalorizada”, completa Edith. A sensação continua até a idade adulta. É o que acontece com João Lucas, na trama de Aguinaldo Silva.
 
É difícil esconder ou disfarçar essa afinidade, que, para o bem de todos, deveria ser encarada de forma natural pela família. Porém, é prejudicial que ela assuma a forma de superproteção ou sirva como um parâmetro para o amor.  “A afinidade maior com um filho pode gerar ciúme nos demais, mas os pais devem deixar claro que isso não significa preferência ou tratamento especial”, afirma Cecilia. 
 
Nem sempre, entretanto, o pai ou a mãe percebem que tratam um filho de modo distinto dos outros. São atitudes inconscientes que precisam ser modificadas quando se derem conta da maneira como agem. “Uma sugestão é prestar atenção na disponibilidade e no prazer que têm em estar com cada um deles”, fala Aurélio Melo.
 
Segundo Edith, porém, são os filhos quem, via de regra, notam a preferência e tomam a iniciativa de reivindicar seus “direitos”. “Atualmente, as crianças têm muita voz, elas sinalizam quando percebem que foram desqualificadas”, afirma.
 
Para lidar com a situação, um dos pontos cruciais é o diálogo. Cada um deve expor e assumir o que sente, inclusive abrir o jogo sobre as dificuldades relacionais, para, juntos, trabalharem a dinâmica familiar. “Os pais precisam buscar algo que funcione como uma espécie de ‘faísca’ para uma relação melhor. Em alguns casos, por exemplo, isso acontece ao cozinharem juntos ou quando batem um papo sobre livros os filmes”, diz Cecilia Troiano. O importante é que essas ações conciliatórias sejam naturais, não forçadas ou, pior ainda, fruto de culpa.
 
Vale lembrar que seja excesso de negligência ou de mimo, o que prejudica é o exagero. “E quando ele ocorre, não é apenas o renegado que padece, mas o protegido também, por ser alvo de expectativas maiores e por se sentir obrigado a alimentar a preferência. Cada um sofre à sua maneira”, diz Cecília. 
 
Não é um caminho fácil nem leve, mas o rejeitado pode se livrar do rótulo e ter uma vida adulta, principalmente na esfera emocional, saudável e produtiva. “O passo fundamental é não se colocar como rejeitado no mundo”, diz Aurélio, referindo-se ao que ocorre com João Lucas em "Império". 
 
“Aprender é viver e viver é aprender. Uma criança que tenha sofrido abandono e desamor poderá superar através de novos e diferentes relacionamentos. Há muitas histórias de crianças que viveram em abrigos devido à falta de estrutura familiar e que puderam reconstruir relações com pessoas que transmitiram segurança através da ternura e da valorização”, explica Edith Rubinstein.