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Mães narram luta para livrar o filho da dependência do crack

João Blota, hoje aos 39 anos, teve a ajuda fundamental da mãe para se livrar do crack - Arquivo Pessoal
João Blota, hoje aos 39 anos, teve a ajuda fundamental da mãe para se livrar do crack Imagem: Arquivo Pessoal

Marina Oliveira e Rita Trevisan

Do UOL, em São Paulo

24/03/2015 06h00

 

Aos 16 anos, o filho da advogada Dagmar Blota, 64, já tinha conhecido o crack. A trajetória dele como dependente químico começou, aos nove, com benzina (substância utilizada como solvente industrial). João Blota, hoje com 39 anos, também usou maconha e cocaína. No início dos anos 1990, experimentou o crack, que era uma droga nova e ainda não comercializada nas chamadas "bocas de fumo". Ele e os amigos produziam a pedra.

“Soube porque um amigo dele me contou. Lembro até hoje deste dia”, diz Dagmar. Levada pelo colega do filho, ela foi à cracolândia, na região central de São Paulo, onde se concentram usuários de drogas. Lá, a mãe percebeu que João era figura conhecida na área, de onde entrava e saía diversas vezes ao dia.

“Voltei para casa e perguntei a ele o que estava acontecendo. Ele me disse toda a verdade na mesma hora. Foi como se recebesse uma facada na boca do estômago”, afirma Dagmar.

No início dos anos 2000, a cozinheira Claudinéia de Jesus Victor, 52, dividia o seu dia entre o trabalho e os cuidados com os filhos e com a casa. Por hábito, nunca colocava uma roupa para lavar sem antes checar os bolsos, para ter certeza de que nada importante se perderia na água.

Na calça do filho mais velho, na época com 17 anos, ela encontrou folhas bem finas (era papel de seda, usado para fazer cigarros de maconha). A mãe estranhou e, ao mesmo tempo, se deu conta de que o jovem estava apresentando um comportamento diferente nas últimas semanas. Recém-formado no ensino médio, ele dormia demais e passou a trocar o dia pela noite.

"Chegava do trabalho e ele estava dormindo. Depois, acordava, saía quando já era noite e voltava de madrugada. Brincava que ele parecia lobisomem", conta Claudinéia. Até que os olhos avermelhados do garoto passaram a chamar a atenção. “Uma vez, cheguei a sugerir que ele estava com conjuntivite. Ele não disse nada, mas passou a não me olhar mais. Andava sempre cabisbaixo.”

Após ver os pedaços de papel de seda que Claudinéia havia encontrado, o irmão dela esclareceu para que serviam. "Quando ele disse isso, me faltou o chão", fala. "Fui falar com o meu filho, que disse que era de um amigo. É lógico que não acreditei."

O problema é que as pistas deixadas pelo garoto passaram a indicar uma situação cada vez mais grave. "De repente, notei que, no quarto dele, no teclado do computador, começaram a aparecer uns farelos brancos, que pareciam farinha de trigo. Fiquei desconfiada, mas nem passava pela minha cabeça a possibilidade de ele estar cheirando cocaína."

Mas era exatamente isso o que o garoto estava fazendo e, em alguns meses, experimentou o crack. “Lembro do primeiro dia que ele fumou. Cheguei em casa e ele estava com os olhos fundos, vomitava muito. As pálpebras estavam fechadas, mas o olho corria de um lado para o outro. A musculatura dele tremia, como se estivesse com frio”, afirma Claudinéia.

A aposentada Ana*, 65, também descobriu que o filho, ainda com 16 anos, tinha se tornado dependente químico ao encontrar maconha nos bolsos da roupa dele. Antes, ele havia começado a abusar do álcool, depois, migrou para a erva, passou para a cocaína e, aos 19, descobriu o crack. “Meu filho começou a emagrecer muito. Para mim, ficou claro que ele estava caindo em um buraco e que eu ia me afundar com ele.”

O dia a dia de um dependente

Dificilmente, os pais de um dependente químico estão preparados para o que vão enfrentar a partir do momento que se conscientizam da doença do filho. Por ter um efeito de curta duração –ainda que devastador–, o crack faz com que o usuário procure a droga diversas vezes ao dia para sentir o prazer intenso que ela proporciona. Por isso, é comum dependentes ficarem fora de casa por longos períodos.

O filho de Ana chegou a passar 30 dias sem dar notícias. “Só chorava. Não dormia, não comia, passava a noite inteira sentada na sala, esperando ele ligar ou aparecer. Meus outros filhos pegavam o carro e iam atrás e, muitas vezes, até encontravam, mas ele não queria voltar”, conta. Quando enfim retornou, a mãe não o reconheceu. “Ele tocou a campainha de casa e vi um homem todo barbudo, sujo, muito magro. Não abri por medo. Foi meu marido quem percebeu que era ele e o colocou para dentro de casa.”

Dagmar encontrou o filho na favela, só de cueca. Ele tinha vendido a roupa do corpo para comprar a pedra. “Fiz acordos com vários traficantes da cidade, pagava para eles o que o meu filho gastava por dia, só para que não vendessem mais crack a ele. O problema é que, quando não encontrava mais a droga em uma favela, ele ia para outra.”

joão blota e a mãe, dagmar - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Dagmar e o filho, João, aos 24
Imagem: Arquivo Pessoal

O filho de Claudinéia também chegou a vender tudo o que tinha. Porém, quando o dinheiro dele se tornou insuficiente para sustentar o vício, o garoto também passou a cometer furtos em casa e na vizinhança. “Ele entrava na casa dos meus vizinhos para roubar celular, CD, dinheiro e botijão de gás. Em casa, não podíamos deixar nada de valor exposto, eu dormia com a minha carteira. Mas, mesmo assim, um dia, ele conseguiu pegar e gastou o dinheiro reservado para a prestação da casa.”

Na luta contra o crack

Na tentativa de resgatar o filho das drogas, cada mãe reage de um jeito. Ana passou a frequentar um grupo de apoio, com o marido e os outros filhos. No local, eles foram instruídos a serem rígidos com o dependente e a não permitirem jamais que ele usasse a droga dentro de casa. Eles não o impediriam de sair, mas, quando voltasse, teriam de encaminhá-lo direto para uma clínica de reabilitação. Eles seguiram à risca o que aprenderam, mas foram 16 internações até que o garoto, hoje com 31 anos e limpo há seis meses, conseguisse controlar a doença. Atualmente, ele trabalha como terapeuta na clínica que o ajudou a se livrar do crack.

Dagmar também internou João algumas vezes, mas, nas recaídas, sempre preferiu que ele estivesse a seu lado, mesmo usando a droga. Em uma noite, chegou a entrar e a sair da boca de fumo cinco vezes com o filho. “Preferia ir junto para ter certeza de que ele voltaria. Dormia agarrada na barra da calça dele. Assim, bastava ele se mexer e eu despertava”, diz. No auge da dependência, João chegou a fumar 40 pedras por dia.

Sem obter sucesso com as clínicas de reabilitação, a solução encontrada por Dagmar foi afastar o filho de São Paulo. Convencido pela mãe de que estava sendo perseguido por traficantes, a quem devia dinheiro, ele aceitou se mudar para o interior do Ceará, onde ficou por dois anos aos cuidados de uma amiga da advogada. Voltou aos 20 anos, livre da dependência.

“Por um tempo, sem que soubesse, eu mesma paguei um salário a ele para trabalhar com o meu marido. Era uma tentativa de garantir a reintegração dele à sociedade.” Hoje, aos 39 anos, João Blota realiza palestras gratuitas de prevenção ao uso de drogas e oferece suporte às famílias de dependentes químicos. Ele também é autor, com Rafael Junior, do livro "Noia - O Poder Tentador de Nossas Fraquezas" (300 Editora). 

“Tinha muito medo de morrer e, ao assistir o filme da minha vida, ter vergonha por não ter conseguido ser uma boa mãe e ajudar meu filho a sair das drogas. Então, todas as vezes que perdia força, lembrava dele pequeno, no meu colo, e resgatava o desejo de protegê-lo. Hoje em dia, sou a mãe mais orgulhosa do mundo”, afirma Dagmar.

A história de Claudinéia ainda não teve um desfecho feliz. Ela também internou o filho em diversas clínicas especializadas e, em uma dessas tentativas, chegou a tirar o jovem de debaixo de um viaduto em Santo André, na região metropolitana de São Paulo. Porém, como o rapaz já estava cometendo delitos, não demorou para que a polícia o flagrasse. Atualmente, o filho está preso. E já é reincidente, pela quarta vez.

“Da primeira vez, paguei a um advogado para soltá-lo. Além disso, visitava-o toda semana. Da segunda, foi a mesma coisa. Na terceira, tentei agir diferente e só fui vê-lo após oito meses. Agora ele está preso há dois anos e nunca fui visitá-lo”, diz. “É uma tentativa de dar um choque de realidade, de fazer com que a falta da família lhe dê forças para se regenerar. Penso nele o tempo inteiro, mas consigo dormir porque sei que, na prisão, está protegido dele mesmo.”

*O nome foi alterado para preservar a identidade da personagem.

Confira locais que oferecem ajuda gratuita a dependentes químicos e familiares:

Caps (Centro de Atenção Psicossocial)

O serviço público oferece ajuda a pessoas dependentes de álcool, crack e outras drogas. Atende em momentos de crise e realiza o acompanhamento clínico durante o tratamento, além de ajudar na reinserção social do dependente. Há 59 unidades do Caps no Brasil. 

Grupo de Apoio Amor Exigente

A entidade, sem fins lucrativos, possui cerca de mil grupos espalhados pelo Brasil. As reuniões visam ajudar os dependentes químicos a se recuperarem e também dão apoio aos familiares que precisam lidar com a codependência.