Linha Aqua Allegoria é uma das coisas mais simples e aprazíveis do mercado
por Chandler Burr, do "The New York Times" *
Notas Perfumadas
- Criadora: Guerlain Gênero: Feminino Avaliação:
A coleção Aqua Allegoria foi criada sob a égide de Guerlain, ou mesmo com seu espírito. Mas espere um momento – Guerlain? A maison que criou algumas das obras-primas mais profunda e despoticamente francesas no pré-guerra? Considere Jicky (1889), Mitsouko (1919) e Shalimar (1925), todas estas fragrâncias vêm oneradas com tamanha opulência e glamour, e com uma riqueza tão insanamente calórica que se fossem combustível de avião, poucos mililitros poderiam abastecer um Airbus 380 que estivesse indo de Nova York para Dubai.
Talvez a Guerlain lance as águas-de-colônia exatamente para sair da personagem. Muito poucas pessoas me disseram que usavam os perfumes da linha Aqua Allegoria. Uma pena, porque são algumas das coisas mais simples e aprazíveis do mercado: perfumes despretensiosos e sem muitos adornos são adoráveis pelo fato de serem simples assim. As águas funcionam seguindo o mesmo princípio operacional de uma bela mulher com um vestido de verão bem simples: ela ergue a cabeça, pisca os olhos, dá um sorriso e simplesmente anda. Os rapazes tropeçam no meio-fio para conseguir olhar mais uma vez..
Sylvaine Delacourte, a diretora criativa da coleção, exigiu que as fragrâncias exibissem, de uma só vez, uma translucidez marcante e, de modo aparentemente contraditório, um caráter decisivamente delineado. É parecido com o que se tem no prisma: um contorno que é, ao mesmo tempo, transparente, quase invisível, com fendas de luz colorida emanando de seu interior. O esboço de Mandarine-Basilic, da perfumista Marie Salamagne, pode ser reconhecido instantaneamente no ar, uma tangerina suculenta, que recebeu injeções de frutose perfeitamente estriada por fissuras verdes e aromáticas. É deliciosamente adocicado e herbáceo, de encher a boca d’água e ao mesmo tempo mentolado.
O surrealismo sempre foi o movimento de ordem no universo das fragrâncias, e a tangerina e o manjericão são tão completamente superados pelo Mandarine-Basilic quanto o suco de frutas de caixinha é pelo néctar de Afrodite: um é delicioso, o outro é um ideal platônico. As águas são pó de fada, mas estas fragrâncias trespassam com tanta força quanto o Shalimar. Só a mágica que é diferente.
Ainda assim, há dois grandes problemas. Um é que as águas-de-colônia são vendidas como perfumes femininos, apesar de serem excelentes, se não ainda melhores, como masculinos (dizem que uma infeliz pesquisa qualitativa chegou a essa decisão. Ignore-a.). O outro é um problema técnico: elas fogem rapidamente da pele, e pelo preço, pode-se exigir um pouco mais desse pó de fadas nas prateleiras.
Parece que a Guerlain adotou o desvanecimento como estratégia de marketing nesta coleção: ela muda a cada estação. Os aromas desabrocham nas lojas, deliciando aqueles sortudos que conseguem apanhá-los ainda em botão, mas como tudo que é sazonal, eles desaparecem conforme a estação se vai. Anisia Bella, de Aurelien Guichard se foi para sempre, assim como o charmoso Grosellina, de Karine Dubreuil. Pivone Magnifica, também de Dubreuil, ainda existe em um ou outro estoque de loja, mas esses sem dúvida vão logo desaparecer. Morte celular programada. Não é uma má estratégia. Dilacere alguns corações, e eles guardarão sempre suas melhores lembranças.
Mas há uma certa tristeza em trazer o encanto ao mundo apenas para então erradicá-lo. Pelo menos em 2010 você vai poder ter o maravilhoso elixir do adstringente grapefruit Pamplelune, da perfumista Mathilde Laurent – e, também de Laurent e Jean-Paul Guerlain, o Herba Fresca. Este tem cheiro de um jardim de menta talhado por uma foice, que acabou cortando verde o bastante para garantir que o verão fosse engarrafado. Ou pelo menos enquanto o Herba Fresca estiver sendo produzido.
Em março de 2010, a Guerlain vai apresentar Flora Nymphea - cujo cheiro eu ainda não senti -, criado pelo novo perfumista na casa, Thierry Wasser. Esta mais recente fragrância chega com base em um trabalho de Salamagne que eu acho notável, um pastel olfativo chamado Laurier-Reglissé. Salamagne trabalhou folhas frescas de louro e alcaçuz até chegar a um acorde que, 10 segundos depois, não se lê nem louro nem alcaçuz em si, mas transmite a ideia dos morros sobre Los Angeles, onde o ar que recende as folhas secas do eucalipto refresca conforme o sol se põe. Laurier-Reglissé passa a sensação de uma brisa nos cânions, que graciosamente enrolam as cortinas de linho brancas nos criados-mudos. Você sabe, mesmo enquanto aprecia o aroma, que quando a janela fechar, ele vai desaparecer.
Tradutor: Erika Brandão