Amadeirado e verdadeiramente sedutor, Kalimantan é um perfume extraordinário
por Chandler Burr, do "The New York Times" *
Notas Perfumadas
- Criadora: Chantecaille Gênero: Feminino Avaliação:
Sylvie Chantecaille, uma francesa que viveu durante décadas nos EUA, trabalhou como diretora de criação em várias fragrâncias dignas de nota, entre elas um dos trabalhos seminais do final do século 20, Calyx, da Prescriptives. Quando Chantecaille lançou sua coleção epônima, pretendia seguir os preceitos normais: não comprometer a qualidade ao não economizar em matérias-primas, em nome da criação de perfumes que pudessem transcender o gênero.
Todos dizem isso quando começam, mas Chantecaille realmente cumpriu o que prometeu. Em 1997, ela lançou Frangipane, em 2004 veio Tiare, Wisteria e Le Jasmin. Os últimos três são florais vistosos, tropicais, poderosos, difíceis de dominar e certamente difíceis de transformar em alguma coisa nova. Nas mãos erradas, perfumes com esses nomes ou que pretendem trabalhar essas matérias-primas são geralmente vistos com equívocos. Wisteria? Sério mesmo?
Embora, de alguma forma, a versão de Chantecaille permaneça sutil, adorável e primorosamente real, incluindo não só a essência da florada mas também os caules das flores e o ar quente de verão que a envolve. Em resumo, ele transcende o gênero. O jasmim, flor que quase sempre é embrutecida no processo, aqui é suavizado em um cheiro de flor delicado, que estimula o transe, mais pura e direta do que seu correlato na vida real.
Chantecaille recentemente lançou três novas fragrâncias, uma das quais, Kalimantan, é extraordinária – tanto porque é a primeira vez que Chantecaille se aventura fora do universo floral, quanto pelo fato de ser um excelente perfume.
Cheiros de madeira podem ser chocantes e ultrajantemente literais. Reduzir Kalimantan à categoria dos amadeirados é um pequeno desserviço, mas compreendendo que sua genialidade está em ser muito mais que isso, daremos a ele um espaço perto de outras boas fragrâncias amadeiradas. Gucci Homme é o exemplo paradigmático – uma obra de arte olfativa equivalente ao quadro das latas de sopa Campbell’s, de Andy Warhol. É o cheiro do cedro de um lápis novo, recém-apontado.
Por contraste, Chergui, de Serge Lutens é o carvão, a fumaça que sobra de uma fogueira, o cheiro dos galhos consumidos quase inteiros pelo fogo, das fagulhas dispersas no ar. É um perfume maravilhoso mas não vai fazer ninguém desmaiar.
Sycamore, de Chanel, trilha o caminho artístico que está entre Gucci Homme e Chergui. É um perfume com cheiro de perfume, no qual a madeira não é usada como brinquedo ou como arma. Sycamore é uma decepção muito direta e também cheia de nuances. Pode-se sentir o cheiro das tábuas recém-cortadas para virar o assoalho recém-colocado de uma casa maravilhosa: uma sala vasta, elegante, banhada pelo sol que entra pela janela despida, o chão levemente aquecido. Sycamore é um amadeirado caro e luxuoso, que lembra os painéis dos carros ingleses esportivos dos anos 30.
Kalimantantem mais do que nuances. Ele é estriado com a vegetação do Sudeste Asiático, além de exibir especiarias quentes, árvores úmidas e solo fértil. Em indonésio, “Kalimantan” se refere à ilha de Bornéu, ao norte de Java, um lugar que parece a Terra do Nunca. Já estive várias vezes em Java, e este é um dos locais mais naturalmente perfumados do mundo.
Costumo achar que a palavra “sedutor” é um dos piores clichês de marketing de que se tem notícia, mas devo admitir que ela se aplica aqui. Pierre Negrin, o perfumista por trás de Kalimantan é um mestre da complexidade. Seu Black Orchid, para Tom Ford, é um perfume de mestre, e Kalimantan é tão bom quanto. É capaz de ser ainda melhor. Não me lembro quando foi a última vez que senti um perfume que mudava tanto de personalidade. Em um momento, você sente cheiro de semente de mostarda. Instantes depois, uma estrada de terra tropical. Então vem o céu, azul e úmido. A seguir, a casca das caneleiras, de cardamomo e, em algum lugar distante, madeira recém-cortada, natural.
A maioria dos perfumes que as pessoas descrevem como sendo “uma viagem” não são exatamente aquilo tudo. Este é. Você passa e viaja. O perfume se move, de uma coisa vira outra, o que é muitíssimo raro. Existe todo um mundo dentro desse frasco, e ele passeia pela órbita própria, escurece, clareia, existe na luz e na sombra. É a floresta que chega nos limites do terreno de uma casa onde ninguém mora.
As habilidades técnicas de Negrin estão em franca evidência: a persistência na pele, a difusão e a estrutura são impecáveis. A fragrância o envolve, se acomoda em sua pele e na mesma hora começa o seu trabalho. Nada de ter que esperar, nada de notas de abertura sem significado e que evaporam em três minutos para simplesmente nos distrair do evento principal.
Senti pela primeira vez esse perfume durante um almoço com uma amiga, em Nova York. Conforme ela sentou na mesa do restaurante, desculpando-se pelo atraso e pendurando a bolsa no encosto da própria cadeira, eu franzi as sobrancelhas. Ela se virou e eu estava quase em cima da mesa, na sua direção, tão concentrado no cheiro que devo ter parecido furioso. “O que você está usando?”, perguntei.
“Ah…”, ela disse. Então sorriu casualmente e pegou o cardápio. “Kalimantan.” Ela sabia como era bom.
Tradutor: Erika Brandão