Bruto e sombrio, Untitled talvez seja o legado perfeito de Martin Margiela

por Chandler Burr, do "The New York Times" *
Notas Perfumadas

  • O perfume Untitled de Martin Margiela
    Criadora: Martin Margiela Gênero: Feminino Avaliação:

Na moda – uma indústria na qual as pessoas são excêntricas por profissão – o designer Martin Margiela é um dos mais extravagantes. Dependendo de para quem é feita a pergunta, ele pode ser: talentoso até dizer chega, despudoradamente manipulador, arrogante, visionário, incompreensível, pretensioso, inovador, louco, polêmico, brilhante e tão indecifrável quanto as roupas que cria.


Margiela é belga, mas transcende quaisquer identidades. Sua persona tem a mesma natureza de Rei Kawakubo, cheia de pirotecnias criativas e atitudes místicas. Seu mote básico é “nolo me tangere”, e poucas pessoas escolhem tocá-lo, menos ainda vestem suas roupas. Ele mantém uma distância assídua e previsível – insiste em não ser fotografado, e a atitude em si é um chamado por atenção – mas ele nunca falha na hora de fazer coisas interessantes.
 

A palavra “desconstrução” é usada excessivamente, mas quando aplicado com seriedade e elegância, o pensamento desconstrutivista tem um valor tremendo. Pode-se usá-lo para desmontar um utensílio e reavaliar por que cada uma de suas partes é importante. Ao fazer isso, você pode revisar o próprio objeto e suas suposições quanto a forma e proposta. O objeto pode ser mecânico, estético ou intelectual, poderia ser tão abstrato quanto uma ideologia ou tangível como uma jaqueta. Poderia até ser um perfume.

E isso nos leva ao Untitled. Com seu mais novo perfume, Margiela e a perfumista Daniela Andrier fizeram um trabalho extraordinário na escola neo-brutalista de perfumaria. Um dos maiores perfumes brutalistas é Fracas, de Robert Piguet, que foi lançado em 1948 e foi criado por uma das maiores artistas do meio, Germaine Cellier. Pode ser relevante o fato de Cellier ser lésbica (também era modelo fotográfico) e ter trabalhado com um tipo de arte completamente dominada por homens heterossexuais. Mas ao criar Fracas, ela se tornou uma revolucionária. Abrindo com uma pequena flor branca e indiana chamada tuberosa, ela produziu algo que cheirava como se tivessem injetado óxido nitroso na flor. A tuberosa possui dois aspectos preponderantes: o primeiro é um cheiro floral muito doce e dominante, como o cheiro do lírio, e o segundo é o cheiro de axilas suadas, graças à molécula chamada indol, ou skatole. A tuberosa de Cellier teve esta molécula queimada como se fosse um motor, e Fracas se transformou em uma flor com uma chave de roda acoplada nas pétalas.


Exatos 50 anos depois, em 1998, Anne-Sophie Chapuis e Martine Pallix construíram Odeur 53 para a Comme des Garçons, e ali surgiu o neo-brutalismo. Aquela fragrância cheirava a Maserati pegando fogo: o metal chamuscado, a fumaça dos pneus, o eixo motor cheio de graxa. Nenhuma flor por perto. A abordagem estilística de Andrier em Untitled vem desta escola, mas ela brilhantemente deixou-a mais fortalecida ao criar uma variação em um dos mais fascinantes modismos na arte olfativa. A evolução do perfume é o oposto da opulência romântica da baunilha e almíscar presente nos ótimos Guerlains da virada do século: três horas depois do Untitled ter sido borrifado na pele, o que fica é a figura de linguagem central do realismo minimalista aperfeiçoado pelos jovens mestres Bertrand Duchaufour e Celine Ellena. Sienne d’Hiver, de Duchaufour e Sel de Vetiver, de Ellena, ambos lançados em 2006 e criados, respectivamente, para L’Eau D’Italie e The Different Company, engenhosamente usam moléculas chamadas salicilatos para pintar retratos de rochas frias em toda a sua glória. Baseada nisso, Andrier construiu uma torre de gálbano, uma resina aromática antiga e originada de uma planta persa que é acre e incrivelmente verde.


O resultado é que Untitled é bruto, sombrio e assustador. Tem cheiro – quase como uma alucinação – de galho verde e do machado que o partiu ao meio, de borracha da roupa de uma dominatrix e de metal fundido que agora está congelado. Esta máquina complexa está em cima do cheiro frio de uma pedreira de ardósia no inverno. É uma obra de arte extraordinária.


É preciso ter coragem para permitir isso. Não faço ideia de que tipo de contrato a L’Óreal assinou com Margiela para licenciar a marca dele, mas a L’Óreal corajosamente adquiriu um nome que – fora de Nova York, Paris e Antuérpia – é conhecido por cerca de quatro pessoas. Eles deixaram que ele levasse Andrier o mais longe que ela pudesse ir. E depois viram Margiela partir. Realmente, ele abandonou a supervisão de sua Maison Martin Margiela em 2009. Mas assim que apagou as luzes, ele passou Untitled por baixo da porta. Talvez seja o legado perfeito.

Margiela e Andrier estão lutando para que os perfumes derrubem os padrões convencionais do que é belo. A fragrância deles lembra a destruição de Francis Bacon das ideias similares sobre pintura. Por que um perfume deve ser diferente? Margiela e Andrier propõem um novo tipo de beleza. Poucas pessoas vão usá-lo, mas Untitled é excêntrico, talentoso até dizer chega, despudoradamente manipulador, arrogante, visionário, imcompreensível, pretensioso, inovador, louco, polêmico e tão indecifrável - e brilhante - quanto o próprio Margiela.

 


 

Tradutor: Erika Brandão

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