O criador de "cine-aberturas": conheça o trabalho do designer Saul Bass
Alice Rawsthorn
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Laurence King Publishing/The New York Times
Saul Bass trabalha em seu estúdio; o artista fez aberturas para filmes como "Um Corpo que Cai"
Londres – Enquanto olhava a caixa de ofertas de uma livraria na Terceira Avenida em Manhattan, o jovem designer gráfico Saul Bass foi tocado pelas imagens espiraladas de um livro sobre o matemático francês do século 19, Jules-Antoine Lissajous. Ele comprou o livro e fez várias experiências tentando replicar aqueles espirais. “Eu criei várias coisas. E as guardei durante anos”, lembra Bass. “Então Hitchcock me convidou para trabalhar em ‘Um Corpo que Cai’ (Vertigo). Pronto!”
Alfred Hitchcock o encarregou de criar a abertura de seu thriller psicológico de 1958, “Um Corpo que Cai”. Bass escolheu os espirais do livro de Lissajous como seu tema principal, ciente que elas refletiriam a tensão frenética da trama. Começando com um take bem fechado do rosto de uma mulher conforme a tela é encharcada por uma sombra vermelho sangue, sua abertura termina com um espiral vertiginoso que se transforma em um olho.
É muito raro um designer ser tão reverenciado, em sua área de atuação, quanto Bass o é na arte gráfica para o cinema. As aberturas que ele criou para diretores como Stanley Kubrick, Otto Preminger, Martin Scorsese, Billy Wilder e Hitchcock transformaram algo que, antes, não passava de uma listagem do elenco e da equipe em sensacionais complementos do filme. “O bom de trabalhar com Saul”, disse o compositor Elmer Brenstein, “é que a sua música jamais teria uma oportunidade melhor para aparecer.”
As aberturas de Bass eram tão bem feitas que quando um colega sugeriu para Martin Scorsese que deveriam convidá-lo para trabalhar no filme “Bons Companheiros” (Goodfellas), ele respondeu: “Podemos nos atrever?” Felizmente eles se atreveram. Porém, o trabalho deslumbrante de Bass no cinema obliterou suas outras façanhas como um dos mais prolíficos designers gráficos do final do século 20.
O primeiro grande livro sobre seu trabalho, “Saul Bass: A Life in Film and Design” ["Saul Bass: Uma Vida de Cinema e Design”, em uma tradução livre], escrito pela sua filha, Jennifer Bass, e pelo historiador de design Pat Kirkham, restabelece o equilíbrio ao analisar uma carreira eclética, que também incluiu o design de identidades corporativas, postos de gasolina, capas de discos e livros, brinquedos e um selo postal.
Espirituoso, gregário e intelectualmente curioso, Bass executava cada um dos seus projetos com um estilo aparentemente simples - porém expressivo - que refletia sua fascinação pelo construtivismo, modernismo e surrealismo. Em uma das passagens do livro, Scorsese afirma que suas criações “encontraram e destilaram a poesia do mundo moderno e industrializado.”
Biografia: o início
Nascido no Bronx em 1920, filho de imigrantes russos, Bass trabalhou em estúdios de arte comerciais depois de deixar a escola e se tornou o que ele dizia ser um “estudioso de metrô”, pelo fato de ler com voracidade durante suas longas viagens de ida e volta ao trabalho. Um de seus livros favoritos era “Language of Vision” ["Linguagem da Visão"], de Gyorgy Kepes, e quando ele descobriu que o autor dava aulas no Brooklyn College, logo foi se matricular no período noturno. Kepes era um professor inspirador cujas teorias pioneiras sobre construção e impacto da imagética tiveram uma influência permanente no trabalho de Bass.
No final dos anos 1940, Bass estava trabalhando em Los Angeles, em grande partes nas campanhas promocionais para o cinema, quando, em 1952, o artista abriu seu próprio estúdio de design. Seus trabalhos foram se tornando cada vez mais ambiciosos até que, em 1955, o artista criou uma abertura espetacular em animação para o drama “O homem do Braço de Ouro” (The Man With the Golden Arm), de Otto Preminger.
As aberturas da época eram tão sem graça que os projecionistas geralmente as exibiam com as cortinas fechadas, fazendo com que fossem abertas apenas ao início do filme propriamente dito. Preminger, então, deixou bilhetes nas latas das cópias de seu filme, reforçandoque as projeções só podiam ter início depois que as cortinas estivessem abertas.
Anos 1960: o casamento e a ousadia
Trabalhando ao lado de Elaine Makatura - que ingressou em seu estúdio em 1954 e se tornou sua segunda esposa - Bass criou aberturas para uma série de filmes até o final dos anos 60. Seu repertório ia das aterrorizantes linhas que surgiam violentamente na tela para a abertura de “Psicose” (Psycho) e das preparações para um rali em “Grand Prix” ao espetáculo majestoso de decadentes estátuas romanas em “Spartacus” e o pastiche cômico e animado para “A Volta ao Mundo em 80 Dias” (Around the World in Eighty Days).
Para comemorar seu casamento com Makatura, Bass se permitiu uma auto-referência. Os créditos de encerramento de “Amor, Sublime Amor” (West Side History) são “grafitados” pelas ruas de Nova York e incluem as iniciais “SB” e “EM” em coração.
“Elas deixavam o filme especial na mesma hora”, escreveu Martin Scorsese a respeito das aberturas de Bass. “E elas não eram algo à parte do filme, elas remetiam, instantaneamente, às histórias. Porque, simplesmente, Saul Bass foi um grande cineasta. Ele assistia o filme em questão, entendia seu ritmo, a estrutura, o tom – ele penetrava no âmago do filme e descobria seu segredo.”
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Logotipo da United Airlines, criado por Saul Bass
Anos 1960: além das aberturas
No começo dos anos 60, Bass e sua esposa queriam fazer os próprios filmes. Eles dirigiram uma série de curtas, um dos quais ganhou um Oscar, e um longa em 1974, “Phase IV”.
A dupla também desenvolveu outras frentes para o trabalho do estúdio, incluindo cerca de 80 projetos de identidade corporativa para a AT&T, Bell, Exxon, Minolta, Quaker e United Airlines, entre outras.
Tendo abandonado as vinhetas para filmes nos anos 1970, Bass e Makatura foram persuadidos a retornar à ativa no final dos anos 1980 e criar sequências formidáveis para vários filmes de Scorsese: “Cabo do Medo” (Cape Fear), “A Época da Inocência” (The Age of Innocence) e “Cassino” (Casino), além de “Bons Companheiros”.
Ao “puxar” as memórias que Jennifer Bass tem sobre seu pai e adicionar as observações do Sr. Kirkham, que trabalhou com o artista, o livro cria uma imagem simpática de Bass, como um homem forte e altamente disciplinado, com o dom de fazer amizades e cheio de senso de humor.
Uma vez ele insistiu em conduzir uma reunião de negócios de sua cama no hospital com clientes e colegas vestidos em trajes cirúrgicos. Um mês antes de sua morte, em 1996, ele desacatou ordens médicas ao dar uma palestra na Escola de Artes Visuais de Nova York. Bass passou tanto tempo conversando com os estudantes, depois da palestra, que os responsáveis tiveram que expulsá-los do prédio.
Por toda a sua longa carreira, Bass insistiu que seu objetivo era sempre o mesmo: “Conquistar a simplicidade, a qual detém uma certa ambiguidade e uma certa implicação metafísica, que a torna vital. Se for simplesmente simples, é chato. Trabalhamos a ideia de que determinada coisa é tão simples que vai fazer com que a gente pense e repense.”
Tradutor: Erika Brandão