Como vivem as pessoas que têm "vida dupla"

FERNANDA JUNQUEIRA
Colaboração para o UOL

Entre as atrações do “zoológico humano” do BBB 10 (as palavras são do próprio diretor do programa, Boninho), uma das mais peculiares, sem dúvida nenhuma, é o maquiador Dicesar, 44 anos, de Sertanópolis (PR), que trabalha em um salão de beleza durante o dia e à noite faz shows como drag queen. Conciliar duas ou mais atividades, a exemplo do “brother”, é algo mais do que comum hoje em dia, por diversas razões. As motivações são várias e vão desde a necessidade financeira até a vontade de se especializar em uma área, desenvolvendo duas atividades semelhantes, e, é claro, uma imensa sede de realização pessoal. “Em alguns casos, a pessoa tem um emprego que não curte muito, mas que proporciona o ‘ganha pão’ de cada dia, e outra atividade em que se diverte e realmente faz o que gosta. O problema é que nem sempre o que ela gosta de fazer dá dinheiro”, comenta a psicóloga Carmen Cerqueira Cesar, de São Paulo (SP).

 


A artista plástica Claudia Baht, 34 anos, de São Paulo (SP), tem consciência de que o sucesso e uma boa remuneração para a carreira que escolheu são demorados, pois dependem de fatores como divulgação e reconhecimento. Para se manter e obter retorno financeiro mais rápido, ela decidiu virar tatuadora. “Durante o dia, desenvolvo meus trabalhos artísticos, como projetos, instalações, ilustrações, desenhos e pinturas. Já as tatuagens são feitas com horário agendado, geralmente no período da tarde e nos fins de semana. Portanto tenho como programar o que vou fazer durante o meu dia. E as tatuagens também são uma atividade com arte”, afirma.

 


Realização
 

A psicóloga e consultora organizacional e de carreira Izabel Failde, de São Paulo (SP), observa que para muita gente nem sempre a remuneração é suficiente para manter a motivação. “A maioria busca unir realização profissional e pessoal ao mesmo tempo”, diz, justificando a necessidade de investir em diversas atividades. Um cotidiano burocrático em uma agência bancária carioca nunca foi o sonho da vida da gerente Marta*, que compensa o dia a dia pouco glamoroso com shows de dança do ventre. “Alguns clientes do banco sabem o que faço e até já foram a alguns shows, mas tento manter uma postura mais discreta no meu emprego, já que na minha segunda atividade exploro o meu lado mais sensual”, revela. O mesmo acontece com a professora de Inglês Renata*, que ministra aulas particulares de manhã e à tarde. As noites são dedicadas à academia e à paixão pela pole dance – ela costuma se apresentar com o grupo da academia que frequenta. “A dança é a maneira que encontrei para extravasar o meu lado artístico”, conta.


Boa parte das pessoas que tem vida dupla, no entanto, tenta administrar interesses semelhantes. Há nove anos a redatora Luciana Lins Rodrigues, 31 anos, de São Paulo (SP), cumpre expediente diariamente em uma agência de publicidade. Nas horas vagas, "transforma-se" em Lulina, cantora e compositora. "Além de compor e gravar nos fins de semana e nas horas livres, eu faço também shows com a banda", conta. "Gosto muito de conciliar as duas atividades. Na verdade, ambas envolvem criatividade, só que em cada uma ela é trabalhada de um jeito diferente."

 


Especialização


A necessidade de se especializar também costuma motivar algumas pessoas a investir em duas atividades ao mesmo tempo. É o caso da enfermeira Larissa Dal'Jovem, 22 anos, de São Paulo (SP). De segunda a sexta, das 8h às 14h, ela realiza o acompanhamento, via telefone, de pacientes que utilizam um determinado medicamento para doenças crônicas. À noite e nos fins de semana, Larissa atua em uma clínica que realiza cirurgias de minilipoaspiração. "Auxilio todo o procedimento cirúrgico, verifico o estoque para comprar materiais e cuido também da lavagem e esterilização dos materiais. Optei por esses dois trabalhos por questões financeiras e por ganhar um maior aprendizado na área", conta. "Lido com dois tipos bem diferentes de pacientes, mas ambos são seres humanos, que precisam ter segurança e confiança no meu trabalho", completa.

 


Quem também tem essa mesma percepção social e humanitária é o psicólogo André Carlos Correia, 27 anos, de São Bernardo do Campo (SP), que nos fins de semana encarna o Dr. Minduim, palhaço da ONG Hospalhaço, que visita pacientes em hospitais. "Os dois trabalhos me completam profissional e pessoalmente. A psicologia é a profissão que atuo e procuro focar na questão financeira, já que esse trabalho é a base para minha renda, enquanto o palhaço é mais para uma realização pessoal. Porém, as atividades têm a mesma importância na minha vida, em ambas estou ali disposto para ajudar e para causar mudanças que auxiliem na vida das pessoas", diz.

 


Hobby
 

Já Alexandre da Rós, 33 anos, de São Bernardo do Campo (SP), acredita que todo mundo deveria buscar uma atividade paralela como forma de se realizar no plano pessoal. Controller há cinco anos de uma montadora de caminhões do Grande ABC, ele faz cerveja artesanal em casa, nos fins de semana, há cerca de um ano. “Um hobby ajuda a recuperar a energia perdida pelas frustrações do dia a dia, pela correria do trânsito e da profissão, pelas cobranças por conquistas não atingidas. É realmente prazeroso fazer algo de que realmente gosta, porque o sucesso é muito fácil. Por mais que sejam distintas, as duas atividades que exerço são complementares na medida em que me sinto melhor para começar mais um dia de trabalho. A satisfação de fazer cerveja em casa, sem dúvida, inclui a liberdade de realizar algo realmente meu, de curtir o reconhecimento dos amigos e beber uma cerveja melhor que as outras, feitas pelas minhas próprias mãos”, comemora.

 


A publicitária Luciana Rodrigues compartilha do mesmo ponto de vista. "Meus dois trabalhos são complementares e isso me ajuda a ser mais equilibrada. Se em um lado tenho uma pequena frustração no dia a dia, na outra eu compenso tendo uma grande alegria, e vice-versa. Não existe profissão perfeita e diversificar as atividades é uma boa forma de colher mais coisas boas dos dois lados e dar menos peso à parte ruim de cada um deles", justifica.

 


Organização é fundamental
 

Para a psicóloga Carmen Cerqueira Cesar, de São Paulo, quem decide apostar em uma vida dupla precisa ter resistência, não só física, mas também emocional. “A pessoa deve ser organizada, porque lida com horários apertados, e cuidar bem de si mesma, ou seja, dormir e se alimentar bem, por exemplo”, avisa. “E também ter em mente que esta vida não pode durar para sempre, porque ao longo dos anos é impossível manter o pique”, completa. Para Izabel Failde, outras características essenciais são equilíbrio emocional, resistência à pressão, criatividade, resiliência e capacidade de administrar o tempo e resolver problemas. “Sem essas habilidades a atividade principal fica totalmente comprometida. Como ela é o ‘suporte’ para a segunda atividade, isso não pode ocorrer”, avisa.
 

 

Cristiano de Almeida Ferreira, 31 anos, trabalha como diretor de arte de uma agência paulistana e é sócio-proprietário de um restaurante badalado em Maresias, no Litoral Norte de São Paulo (SP). Embora se sinta realizado, ele admite que é bem difícil administrar duas funções tão distintas. "Por se tratar de um empreendimento no litoral, toda semana tenho de resolver pepinos por telefone, e-mail e skype e nos fins de semana viajo para acompanhar tudo de perto e receber bem nossos clientes", relata Cristiano, cujo maior sonho, no momento, é que "o dia durasse 32 horas". Mesmo diante de tanta demanda profissional, ele encontra tempo para praticar esportes como jiu-jítsu (é faixa preta), corrida, musculação, skate e surfe. A enfermeira Larissa, acredite, faz academia no intervalo entre os dois empregos e se dedica a um trabalho voluntário nos finais de semana, no período da manhã.
 

 

A redatora-cantora Luciana Rodrigues resume: "Quando exercidas na medida certa, duas ou mais atividades podem contribuir para o bem-star de qualquer um. Sem falar nos resultados, que podem ser bons mesmo quando não se foca em um especificamente. É o caso dos filósofos da Antiguidade, ou dos pensadores do Renascimento, que tinham várias profissões ao mesmo tempo, sendo bem-sucedidos em todas elas, porque viam sua atividade como um todo maior do que a soma das partes. O mundo moderno se especializou demais, ao ponto de as pessoas perderem a visão do geral e de tudo o que contribui para uma vida mais equilibrada e feliz. Mas acho que isso, aos poucos, está mudando", analisa.

 

* Nomes trocados a pedido das entrevistadas

 

 

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