Atitudes de Marcos, de "Viver a Vida", abrem discussão sobre machismo, ciúme e traição

FERNANDA JUNQUEIRA
Colaboração para o UOL

Ele é rico – aliás, rico, não; milionário! –, charmoso, culto e envolvente. E, para a alegria das telespectadoras, personificado na telinha na pele do galã José Mayer. Marcos, o empresário bem-sucedido da novela “Viver a Vida”, da Rede Globo, é do tipo quase irresistível. Sim, quase, porque o ciúme e o machismo exagerados (e um tanto fora de moda) do personagem têm rendido uma forte rejeição do público. Em enquete recente promovida por UOL Estilo, 69,5% das pessoas disseram que julgam péssimas as atitudes cafajestes de Marcos, que trai Helena (Taís Araújo) com Dora (Giovanna Antonelli) na maior cara de pau e ainda por cima quer impedir que a mulher trabalhe como modelo ou mesmo se encontre com os amigos.

 

Mas será que o comportamento antiquado de Marcos encontra eco na vida real? Sim, segundo os especialistas. E de acordo com Manoel Carlos, autor da novela, ele é mais comum do que se imagina. “O ciúme e o machismo não escolhem nível social nem faixa etária. Basta ver os inúmeros casos de crimes passionais envolvendo pessoas de todas as idades e classes sociais. O ciúme tem a ver com sentimento de posse, medo de não ser amado ou de não ter se sentido amado na infância pela mãe. Ou seja, como diriam os psicanalistas, é uma questão de narcisismo”, justifica Maneco, que comenta ainda que quem trai sempre tem medo de que o outro faça a mesma coisa.

 

Ciúme, o grande vilão
Sua opinião vai ao encontro com as teorias dos especialistas. Segundo Gislaine Gil, neuropsicóloga do Instituto de Geriatria e Gerontologia do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, de São Paulo, o ciúme é um sentimento instintivo e natural a todos e é decorrente do medo real ou irreal de se perder o amor da pessoa amada. “O ciúme da pessoa que trai aparece muitas vezes na forma de paranoia, da ideia de que o parceiro também possa trair ou de possessividade e do controle das ações do parceiro para que ele não traia”, explica. “Durante muito tempo atormentei minha ex”, revela o radialista Clóvis Guilherme, 31 anos, do Rio de Janeiro. “Implicava com suas roupas, com seus amigos e com seu trabalho. Cercava o tempo todo com medo de que me traísse. Só depois que terminamos compreendi que eu, na verdade, é que queria ter uma vida mais solta e transferia meus desejos para ela.”

 

Para a educadora Suely Buriasco, graduada em Estudos Sociais e pós-graduada em Docência Superior e Mediação de Conflitos, do Mato Grosso do Sul, há uma correlação do tipo “Enxergo no outro aquilo que vejo em mim”. “É difícil para o ser humano em geral conceber atitudes diferentes das suas nos outros”, afirma. “Em relação à traição, isso não é diferente. Com certeza, aquele que trai manifesta ciúme doentio, fruto da desconfiança e do medo. Afinal, ninguém quer ser passado para trás. É o caso do personagem Marcos, que, por saber que é tão volúvel, atormenta Helena com exigências absurdas, principalmente em relação à profissão dela”, destaca. “Ao tentar impedir que Helena trabalhe, Marcos tenta fazer com que ela diminua o seu ciclo de amizades e, consequentemente, em seu pensamento, reduz as chances da mulher se interessar por outro homem”, completa a neuropsicóloga Gislaine Gil.

 

“A Helena é linda, extrovertida e popular, como minha noiva”, conta o bancário Rafael*, de 24 anos, de São Paulo. “Mas nem por isso tento podá-la. Acho que quanto mais em cima o homem fica, mais a mulher se sente com vontade de desafiá-lo”, dispara.

  • Divulgação/TV Globo

    Marcos (José Mayer) mantém um caso extra-conjugal com Dora (Giovanna Antonelli) na trama da novela "Viver a Vida"

Embora pareça antiquado, o machismo do personagem é algo comum. “Ainda vivemos em uma sociedade machista, mesmo com todas as conquistas do movimento feminista”, pondera o novelista Manoel Carlos. Entre os fatores que ainda norteiam esse tipo de comportamento, está a educação. Os pais, às vezes sem perceber, contribuem para disseminar o machismo ao dividir as atitudes entre “de menino” ou “de menina”, ao falar que homem não chora, ao estimular o filho a “pegar todas” enquanto a filha tem horário para chegar em casa. “Com estes comportamentos reforçamos a cultura machista de reprimir o choro, o medo, as fraquezas e acentuamos o valor do ‘garanhão’! Os veículos de comunicação também têm sua cota de responsabilidade. Basta ligar a TV e ver seios e nádegas femininas à mostra, mas raramente há um homem nu exposto”, ressalta Gislaine Gil.

 

Suely Buriasco avisa que, infelizmente, mudanças de paradigmas não se operam rapidamente. “As pessoas não gostam de se intitular machistas, entretanto concebem sem exame crítico esse conceito herdado através das gerações. Muitas mulheres alimentam esse comportamento, inclusive transmitindo para os filhos as diferenças na criação. O resultado é esse!”, salienta. Ela também chama a atenção para o fato de o machismo estar ligado ao poder. “Ainda existem homens que se preocupam muito com essa aparência do empresário bem-sucedido que toma uísque, tem uma linda mulher em casa e quantas quiser na rua. O que não é diferente em outras classes sociais, em que muitos homens não têm o que levar de comer para casa, mas para mulheres e cerveja sempre há de se dar um jeito. Há nisso algo de ‘poder’, fruto da insegurança e da falta de caráter. Mas não se pode negar uma grande melhora nesse sentido; hoje já é possível constatar que tais atitudes repugnam muitos homens”, diz Suely.

 

Em “Viver a Vida”, enquanto Marcos trai a mulher com Dora sem a menor sombra de remorso, Helena sofre por se sentir atraída pelo fotógrafo Bruno (Thiago Lacerda) e por ter sido flagrada aos beijos com ele pela menina Rafaela (Klara Castanho). A maior parte do público torce para que Helena se livre de Marcos e consiga ser feliz ao lado do fotógrafo, mas, na vida real, ainda há quem ache que homem que trai “é viril” ou “está cumprindo o seu papel de macho”, enquanto a mulher que faz o mesmo não passa de uma “sem-vergonha” ou outros termos bem menos leves.

 

Mudanças à vista

  • Divulgação/TV Globo

    Casada e traída, Helena (Taís Araújo) se sente culpada pela atração que sente por Bruno (Thiago Lacerda) na novela

De acordo com Gislaine Gil, isso vem mudando aos poucos, significativamente, após a emancipação feminista. “Sabe-se hoje que as mulheres traem tanto quanto os homens, principalmente as mais novas, pois a conquista da liberdade sexual e do mercado de trabalho pelo sexo feminino ampliou as oportunidades de infidelidade”, acredita. Para a administradora de empresas Vívian Leite, 27 anos, de São Paulo, a garotinha Rafaela funciona como uma espécie de “consciência” de Helena. “Marcos trai, todo mundo fica sabendo e não fala nada. Já Helena morre de medo de que Rafaela abra a boca e se sente culpada. Eu já traí um ex, mas não passei de uns beijos, o que já foi suficiente para me sentir mal”, confessa.

 

Existem, ainda, mulheres que gostam dos homens machistas, pois se sentem amadas e protegidas, e as que se esforçam para modificar os seus queridos e amados “ogros”. Para essas, é importante recomendar não ceder às exigências do parceiro machista, pois isso limitará sua liberdade de expressão emocional. A relação poderá até dar certo no início, mas com o tempo poderá ficar desgastada e insuportável, pois a pessoa sente-se literalmente sufocada – é o que vem acontecendo com Helena desde que se casou com Marcos.

 

“Mulheres que aceitam subjugação convivem mais facilmente com parceiros machões. Não que isso as satisfaça, apenas acreditam que é papel delas passar por tais constrangimentos. Mas muitas já lutam por sua liberdade e poder de escolha. Na minha concepção essa é a relação que pode dar certo, se e somente se, houver muita disposição e amor da parte do parceiro em aceitá-la assim e se adaptar a conceitos menos conservadores e arcaicos de comportamento. É difícil, mas não impossível!”, acredita a especialista em mediação de conflitos Suely Buriasco. “Quanto à novela, acho importante que tramas como essa possam despertar questionamentos importantes sobre o que realmente é essencial para o ser humano: ser feliz! Marcos é a representação daqueles que na ânsia de muito ter, não possuem mais do que a efemeridade do prazer”, finaliza.

 

* O nome foi trocado a pedido do entrevistado

 

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