Vaidade em excesso pode colocar criança em risco
FERNANDA JUNQUEIRA
Colaboração para UOL
Todos os sábados, o ritual se repete: a gerente de marketing Mariângela*, de 36 anos, tem horário fixo no salão de beleza perto de casa para fazer escova, mão, pé, depilação, hidratação e o que mais precisar naquele momento. A filha Júlia*, de 4 anos, a acompanha. Em vez de ficar brincando em um canto, como seria comum a uma criança de sua idade, Júlia também faz escova nos cabelos e pinta as unhas dos dedinhos das mãos de pink. Assim como acontece com algumas mulheres maduras, o figurino da garotinha para ir ao salão é calculadamente planejado: calça e blusinha grife infantil famosa; nos pés, um par de Melissas de saltinho, e gloss rosinha nos lábios. Algumas clientes do espaço acham a cena “engraçadinha”, outras, meio que constrangidas, se limitam a observar. “Sou vaidosa e acho normal estimular a vaidade de minha filha. Que mal há em ter os cabelos sedosos e as mãos benfeitas? Quero que ela aprenda a cultivar a autoestima desde cedo”, justifica Mariângela que, ao tomar ciência de que o teor dessa reportagem era um alerta, pediu para que as duas fossem citadas somente com pseudônimos.
Em um país onde a infância está cada vez mais curta, cenas como essa vêm se tornando corriqueiras. As celebridades e a curiosidade que mobilizam também influenciam – bastar ver alguma foto de Suri Cruise, filha dos astros Tom Cruise e Katie Holmes, que aos 3 anos de idade já usa sapatos com saltinho, batom e está sempre fashion. Ou de Lila Grace, 7 anos, herdeira da top model Kate Moss e dona de um guarda-roupa recheado de bolsas e roupas de grife. Para Maria Regina Domingues de Azevedo, psicóloga do Ambulatório de Hebiatria da Faculdade de Medicina do ABC, as crianças sempre cultivaram um certo grau de vaidade, almejando a aquisição da identidade adulta, mesmo que antes do tempo. “Em proporções moderadas, a vaidade infantil é perfeitamente normal e até reflexo de uma autoestima positiva. O problema é quando esse comportamento passa dos limites”, opina a especialista, que acredita que o “boom” de crianças vaidosas tem muito a ver com os tempos atuais. “A sociedade pós-moderna valoriza o ter em detrimento do ser, e a criança não está alheia a isso. Ela raciocina que, se não mantiver um padrão de perfeição estética, os outros não irão gostar dela. Assim, cria sua própria armadilha, pensando ter encontrado a fórmula da felicidade.”
Segundo o raciocínio da psicóloga, em muitos casos o desejo infantil de participar do universo adulto é legitimado pela própria família. Pais vaidosos e sem senso crítico às imposições sociais têm grande chance de “produzir” filhos idênticos. Afinal, as crianças sempre querem imitá-los, eles são exemplos, seus modelos de identificação e sua principal referência. “Se os pais já estão influenciados por esses valores, dificilmente os filhos serão diferentes”, diz Maria Regina.
A sociedade pós-moderna valoriza o ter em detrimento do ser, e a criança não está alheia a isso
Mais do que consentir, alguns pais também incentivam cuidados excessivos com a aparência, chegando até mesmo a criar uma ditadura mirim da beleza. A mãe não se contenta com a própria obsessão em ser magra e quer que a filha adote o mesmo comportamento. Muitas atitudes maternas são entendidas pelas crianças como: “Você quer crescer e ser uma mulher gorda e feia?” Resultado, a garota pode crescer comendo doces e guloseimas às escondidas e, depois, forçando o vômito. Mais tarde, na adolescência, passa a ser mais uma vítima da bulimia e da anorexia. Além de distúrbios alimentares graves, as crianças também se tornam propensas a desenvolver transtornos de ansiedade, estresse e depressão.
“Focar nessa exigência da vaidade faz com que a criança tenha uma saída precoce da infância, pois começa a preocupar-se antes da hora com sua aparência, com roupas, peso, e a olhar e ser olhada pelo mundo de outra forma”, alerta a terapeuta infantil Daniella Freixo de Faria, de São Paulo. “As etapas do crescimento existem para que esse crescimento aconteça de maneira gradativa, processual e repleta de experiências que trazem aprendizado. Colocar uma criança para lidar com assuntos que ainda não domina traz sofrimento e angústia, já que esse movimento não é um movimento natural. Uma criança sem sua naturalidade e espontaneidade pode não estar feliz, mesmo usando tantas roupas bonitas, produtos e maquiagens”, afirma. E como a criança percebe a atitude de uma mãe que passa chapinha no seu cabelo ondulado? Será que ela pode registrar a mensagem "implícita" de que só quem tem cabelo liso é bonita? “Infelizmente, pode”, responde a terapeuta Daniella. “E isso interfere na construção da imagem interna. Quanto mais a criança puder receber reconhecimento, amor e aceitação por ser exatamente como é, melhor”, destaca.
Autocuidado
Rita Calegari, psicóloga do Hospital e Maternidade São Camilo, de São Paulo, lembra que, originalmente, a palavra vaidade não tem conotação "saudável", significando "desejo exagerado de atrair a admiração ou homenagens dos outros; ostentação; futilidade; orgulho". “Nós acabamos por perdoar essa inclinação da vaidade em ser negativa, tentando dar a ela contornos menos pecaminosos.
A vaidade é uma expressão típica, porém não exclusiva dos seres humanos. Bichos também possuem essa característica, tanto que a usam para dominar ou seduzir com o propósito de acasalar e perpetuar a espécie. Às vezes, associamos a vaidade com o asseio, o autocuidado. Pensando assim, em torno dos 2 anos, a criança já começa a imitar comportamentos de quem ela admira: mamãe, papai, irmão mais velho ou artista da TV. A menina pode imitar a mãe querendo usar o salto alto ou pintando as unhas, ou o menino ao pai, imitando fazer a barba e passar perfume”, comenta Rita. Como em certa idade os pais cuidam do asseio da criança, já que ela é incapaz de fazê-lo sozinha, são eles (os pais) que incentivam ou ensinam parte desses hábitos que depois iremos chamar de vaidade. De acordo com Rita Calegari, estimular a vaidade no seu sentido original é sempre complicado. “Estimular o autocuidado como uma parte fundamental do desenvolvimento e da construção da autoestima é valioso. Mas a vaidade desvinculada de algo mais saudável, como é o autocuidado, pode fazer mal, pois incentiva a criança a ‘parecer’ e não ‘ser’ alguma coisa”, assegura.
Essa é uma preocupação da rede de academias My Gym Brasil, especializada em atender crianças a partir das 6 semanas até os 13 anos de idade. “Nosso método é não competitivo. É voltado para a construção da autoestima, como a saúde e o bem-estar dos pequenos. Nas aulas, mostramos a importância de estarmos sempre em movimento, e de se sentir bem consigo mesmo. Ensinamos que boa forma está ligada a qualidade de vida, em cooperar com os outros e dar bons exemplos, e não em estar gordo ou magro”, afirma Thais Japequino, diretora executiva da My Gym Brasil. “Em nosso espaço, as crianças têm a oportunidade de vivenciarem a infância. Conseguimos direcioná-las sempre para a não competição, ou comparação. Parece que aqui elas esquecem que querem ser adultas”, conta.