Desculpa pela bagunça!
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Paola Saliby/UOL
Vida com crianças é um exercício de conviver com cores imprevisíveis e destoantes. E muita sujeira
Minha vizinha tocou em casa dia desses e eu a convidei para entrar, a gente precisava trocar um papo rápido. Minha casa estava em um dia comum, ou seja, um caos. Não moro dentro da revista de decoração, mas confesso que mimar a casa é um dos meus hobbies. Fui decoradora (sou? fui? nasce uma mãe, nasce uma crise) e meus dotes com as telas e pincéis, as cores e os tecidos fizeram da minha sala um local meramente agradável.
E daí nasceram meus filhos e eles fizeram da minha sala um local meramente... nojento. A ponto de a vizinha adentrar na casa e eu disparar instintivamente o clássico: "desculpa pela bagunça".
Virei mãe por meio das imagens estáticas de revistas, das novelas, dos filmes e dos, por que não?, comerciais de margarina. Ou carros. Ou inseticidas venenosos, esses, sim, comerciais de mães lépidas e magrinhas com casas impecavelmente arrumadas e filhos combinando. Não era de se surpreender que eu achasse que a vida com as crianças ia ser, digamos, mais "ton sur ton".
Pois bem, não é. Vida com crianças é um exercício de conviver com cores imprevisíveis e destoantes. E muita sujeira.
As almofadas, antes organizadas por relevância de tamanho no sofá, formam um vulcão no meio da sala. Os móveis mais acessíveis estão sujos com melecas. Normalmente saliva mesmo, porque criança gosta de lamber as coisas. E eles pouco ligam se dentro da boca há um restinho de leite ou da bolachinha orgânica que você pagou o olho da cara, o negócio é estimular o prazer oral e lamber geral. E desmoralizar as almofadas, claro, aquelas pestes. Desculpa pela honestidade.
As roupas que você comprar daquela infinita –e ironicamente inútil em sua maioria– lista de enxoval tem destino certo: ou serão tão pouco usadas, porque as crianças crescem rápido demais para seus ajustes de modo que parecerão novas quando abandonarem suas gavetas, ou serão suficientemente usadas (e por isso, se seu filho for porcalhão como os meus, leia-se umas duas ou três vezes) para abandonarem as gavetas diretamente para a prateleira de trapo. Trapo de limpar móvel babado com resto de comida azeda. Desculpa pela escatologia.
Sabe aquelas mantinhas e sachês que combinam com a garrafa térmica, o porta-cotonete e o paninho que vai em cima do ombro na hora de pôr o bebê para arrotar? Então, isso só funciona na revista mesmo. Na vida comum, ou seja, no caos, nenhum sachê apaga o odor de cocô que impregna em um quarto de uma fraldinha premiada recém-trocada. E na hora que você precisa de um paninho para limpar uma golfada nervosa que seu filho deu no sofá de "chenille", só vai encontrar o resto do pacote da bolachinha orgânica que seu mais velho picou pela casa toda. Entre e fique à vontade, só não sente aí nessa mancha que o menino acabou de vomitar no sofá! Desculpa pela falta de tato.
Preparada para uma maternidade limpinha e decorada é difícil receber a vizinha sem alguma autocrítica pela capa de revista não alcançada.
O jeito é fazer uma avaliação da visita antes mesmo que ela entre em casa, para saber o nível de aflição que ela vai passar. Daí desenvolvi um método.
Se a pessoa não tem filhos, peço desculpa mesmo. Ela nunca vai entender o porquê daquele monte de torrada dentro do vaso da planta (que morreu, né?). Se ela tem filhos, reparo nas meias deles. Se estiverem impecáveis e pareadas, é possível que ela seja uma mãe de revista. Não só peço desculpas pela bagunça como também peço umas dicas. Quem sabe ela me ensina como manter a ordem e o equilíbrio cromático da minha casa e meus filhos mais limpinhos? E, por fim, se ela aparecer com uma criança vestindo uma camiseta que poderia ser um trapo de limpar chão, nem preciso falar nada. Vai entrando, cuidado com essa meleca, sente-se e fique à vontade. Ela é das minhas.
Anne Rammi
Anne Rammi, artista plástica e mãe do Joaquim (3 anos) e do Tomás (1 ano). Experimentou com a chegada dos meninos a oportunidade de quebrar muitos paradigmas da maternidade contemporânea e relata suas experiências com fidelidade e uma peculiar (e muitas vezes polêmica) ironia. Escreve muito, fala muito, produz incessantemente, em especial sobre os temas do universo da maternidade crítica e consciente, como o parto humanizado, amamentação prolongada, criação por apego e em defesa de uma infância livre de consumismo, sendo personagem importante nos grupos ativistas da internet materna. Recentemente virou vegetariana e vive o dia a dia tentando adequar as ideologias às práticas, rumo a uma vida com foco na família, na sustentabilidade e na educação fora da escola. www.mamatraca.com.br