Infância

Meu filho anda armado

Mamatraca

Mamatraca

  • Paola Saliby/UOL

    Crianças lutam e atiram coisas, por motivos aleatórios, com ou sem referência de duelos

    Crianças lutam e atiram coisas, por motivos aleatórios, com ou sem referência de duelos

Uma lei do Distrito Federal proíbe a venda de armas de brinquedo. Há muito tempo, venho refletindo sobre elas e até agora não tenho conclusão nenhuma. Vou juntar aqui uns fatos que perambulam na minha cabeça.

Sou o tipo de gente completamente a favor do desarmamento. Quando, em 2005, respondemos ao referendo que acabou, por vontade popular, permitindo que a população civil mantivesse o direito de porte de armas, a primeira coisa que fiz foi dizer para minha mãe, que votou com a maioria:

– Ótimo. Agora vou sair e comprar meu revólver com cano de madrepérola para carregar na bolsa. Já que pode, eu quero.

Naquele dia, percebi na cara dela que nenhuma mãe, mesmo aquelas a favor de porte de arma, acha muito normal ver o filho armado.

O primeiro contato que meu filho teve com uma arma foi na piscina da casa dos tios, um atirador de água. Uma pistolinha divertida. Chame como quiser. Copiando os primos, ele mirou o aparato na minha direção e esguichou toda a munição.

Confesso que senti um estranhamento, digno de 2005. A natureza nos devolve as grosserias que fazemos com nossos pais. Estou elaborando esse limite, mas arma é arma, certo?

Mas eis que, meses depois, fizemos uma viagem com muito contato com a cultura indígena e de lá voltamos inspirados a construir uns brinquedos.

O pai fez um arco e flecha. Um não, três, com os galhos da árvore do nosso quintal. O mais velho aprendeu a atirar com (quase) maestria. Surgiu na época a primeira grande regra: jamais aponte para pessoas. Mantemos essa atitude até hoje. Eles brincam ainda com espadas, zarabatanas e facas de brinquedo.

Sou uma antiga fã do "Star Wars" e guardo, com louvor, minha réplica de sabre de luz. Já conscientes da regra de que não se pode encostar –nem de brincadeira, lutinha, por nenhum motivo– uma espada no corpo do irmão, dos adultos ou dos amigos, o sabre de luz é liberado aqui em casa. E é arma, né?

E, se não fosse o sabre de luz, essas criaturas matariam os dragões imaginários e duelariam contra o vento usando os cabos das vassouras, os palitinhos japoneses e outros objetos pontudos. Minha experiência me mostrou que eles lutam e atiram coisas, por motivos aleatórios, com ou sem referência.

"A coisa de matar" foi a definição do meu filho de três anos e meio, quando, pela primeira vez, viu na TV da casa de alguém uma pessoa empunhando um revólver. Juro que não sei como essa associação foi feita, nem tenho a pretensão de achar que sei onde eles aprendem as coisas ou tenho controle sobre tudo a que são expostos.

Na mesma época, cedi à tentação e comprei uma atiradora de dardos. Já com a ideia de que não se aponta para ninguém, vivemos muitos momentos de diversão com o simples fato bobo de que as ventosas colam no teto e depois caem nas nossas cabeças. Juro que não eram brincadeiras violentas.

Quando me lembro que assisti a "Tiros em Columbine", do diretor Michael Moore, que olha para a indústria das armas como ponto principal para a escalada de violência entre jovens americanos, percebo que existe um atalho para toda essa questão, que precisa também ser investigado: colocar armas nas mãos das crianças, é acostumá-las com armas. Naturalizar sua presença.

Os brinquedos, de uma forma geral, naturalizam a presença de ícones desimportantes e perigosos na nossa sociedade. Você já reparou como todas as bonecas têm chupeta e mamadeira? Não seria esse um sinal de que a amamentação no peito não faz parte de nossa cultura? Ou como multiplicou-se o número de brinquedos que tratam de patologias? Bonecas operadas, medicadas, kits completos com seringas, remédios. Vejo tudo isso como um sinal do tempo estranho em que vivemos. Os brinquedos relatam esse tempo.

Uma perguntinha, antes de acabar. Vão proibir também videogames com armas, conteúdos infantis como os heróis armados e outros brinquedos que não são armas específicas, mas carregam armas?

E aquele esporte que agora estão querendo naturalizar como cultura no Brasil, onde duas pessoas se matam de bater dentro de um ringue, não seria aquilo um convite à violência, também passível de proibição? Eu assino embaixo. Para mim mais preocupante do que o objeto em si é a referência humana da violência.

Jamais seria contra uma lei que proíbe a venda de armas. Mesmo que sejam pistolinhas de água. Sinceramente, estou de acordo com quem diz que, para a criança, não faz falta e não me vejo defendendo o estranho direito de comprar armas para o filho.

Acredito na lei como um regulador da coerência, uma sociedade que diz que quer construir um futuro melhor, que se incomoda com a violência e que faz questão de proteger os mais fracos, deve estar também disposta a abrir mão dessas manifestações da cultura contaminada pela falta de humanidade nas relações.  E que proíbam também, um dia, os brinquedos que estimulam automedicação e desmame. Que pensem no sexismo incutido em cada peça, destinada para meninos heróis e meninas domésticas.

Até lá prometo olhar criticamente para as questões da infância dos meus filhos e tentar fazer boas escolhas. Mas não consigo ainda dizer que eles jamais brincarão com armas. Ou que utilizarão seus corpos, no ímpeto das agressividades da infância, para lutas corporais ou com seus "inimigos" imaginários.

Ontem, fui ao mercado e ele quis levar a tal pistolinha de dardos. Pediu para eu prendê-la na cintura da calça, com um gancho que veio no brinquedo e que eu mesma ofereci como referência. Permiti tudo –não havia muito o que ser discutido naquele momento– e segui pensando "meu filho anda armado".

Anne Rammi

Anne Rammi, artista plástica e mãe do Joaquim (3 anos) e do Tomás (1 ano). Experimentou com a chegada dos meninos a oportunidade de quebrar muitos paradigmas da maternidade contemporânea e relata suas experiências com fidelidade e uma peculiar (e muitas vezes polêmica) ironia. Escreve muito, fala muito, produz incessantemente, em especial sobre os temas do universo da maternidade crítica e consciente, como o parto humanizado, amamentação prolongada, criação por apego e em defesa de uma infância livre de consumismo, sendo personagem importante nos grupos ativistas da internet materna. Recentemente virou vegetariana e vive o dia a dia tentando adequar as ideologias às práticas, rumo a uma vida com foco na família, na sustentabilidade e na educação fora da escola. www.mamatraca.com.br

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