Escola sustentável de mentira
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Paola Saliby/UOL
O termo "sustentabilidade" vem sendo aplicado de forma inadvertida para qualquer situação
Passei outro dia pela porta de uma escola de educação infantil que convidava pais e alunos para a mostra de artes das crianças cujo tema era "Arte e Sustentabilidade".
Sou daquelas que, toda vez, que lê a palavra sustentabilidade torce o nariz. Não porque eu seja contra, imagina, por favor. Pelo contrário, sou uma grande entusiasta de saber viver uma vida sustentável em sua essência, do tipo que não depreda, não explora, não desperdiça nem deixa rastros.
Mas o termo "sustentabilidade" vem sendo aplicado de forma inadvertida para qualquer situação. Ironicamente, também acontece isso com o termo "arte". E dei uma paradinha na porta da escola para ver do que se tratava a feira.
Os trabalhos dos alunos, padronizados pela faixa etária deles, utilizavam materiais "reciclados". Robôs feitos de iogurte, bilboquês feitos de garrafa PET, construções interessantes até, com os mais variados itens dispensados das nossas cozinhas e banheiros. Mas não deixou de me incomodar o fato de que, primeiro, eram nitidamente organizados pelos adultos, e, depois, eram repetidamente pintados pelas crianças.
Uma farsa de sustentabilidade e artes na feira cultural da escola do bairro.
Eu me pus a pensar sobre essas "atividades ecológicas" e me lembrei de algumas cenas. Uma amiga que me contava que precisava mandar para a escola sete tampas de determinado molho de tomate. Detalhe: para cada filho.
Ao fim da história, ela comentava decepcionada: "eu nem consumo esse molho". Quando a escola pede um material determinado para fabricar tal trabalhinho, pode ter certeza que não há nada de sustentável nisso.
Se uma família precisa comprar um produto que não consome para mandar para a escola um negócio pré-determinado que atenda ao que o professor planejou, repense! Isso sequer é uma atividade artística, uma vez que a criança não tem participação criativa nenhuma na montagem da "árvore de natal com tampas de lata de molho de tomate".
Lá na escola, toca professor e assistente montar, recortar, colar os formatos das tais "peças de arte sustentável". Um tempo do profissional perdido, jogado no limbo. Não que eu ache que professores devem patrulhar as crianças o tempo todo. Mas, certamente, têm mais o que fazer do que operar com cola quente e tesoura 36 rolinhos de papel higiênico até que se transformem em foguetes!
E sobe escada e desce escada, professores e assistentes arrastam para todos os seus momentos na escola papéis coloridos, pedaços de EVA e outros aparatos para fabricar essas atividades duvidosas.
Depois que elas são fabricadas na escola, pelos adultos, com nenhuma ou pouquíssima participação das crianças (elas, no máximo, "colam os olhos", "pintam o corpo" ou escolhem a cor de suas traquitanas), os objetos vão parar onde? Na casa da família.
Considerando que uma criança passa 15 anos na escola, se ela tiver um objeto desses por mês no currículo, ao final do percurso escolar do rebento, uma família terá jogado fora 150 "sucatas arte". Porque, convenhamos, em casa, não há o que fazer com esses objetos.
Reutilizar coisas da nossa vida cotidiana para os trabalhos artísticos é uma ideia maravilhosa, mas, incrivelmente, mais simples do que fazer essas superproduções ineficazes para o aprendizado ou para o ambiente.
Garrafas PET podem ser enviadas para a escola, cortadas e sem rebarbas, para servirem de potes de areia, água ou suporte para tintas e pincéis nas atividades das crianças. Todos os outros potes também. Já pensou em uma escola que não compra brinquedos de areia, mas, sim, recebe, seleciona, cuida e direciona para o lugar certo esses materiais com as famílias? Isso sim seria sustentável.
Escovas de dentes velhas são ótimos pincéis para pintura. Assim como as buchas de pia, que, antes de irem definitivamente para o lixo, eternamente padecendo na face da terra, pois não são recicláveis nem biodegradáveis, podem ainda fazer um estágio como carimbos ou outro material de pintura. Isso sim é reaproveitar algo que ainda pode durar uns bons anos.
Objetos "recicláveis" limpos podem fazer parte do cotidiano da educação, como estímulos sensoriais para os pequenos, peças inespecíficas para empilhar e brincar, para os mais velhos, ou ainda para os hábeis, aqueles que conseguem abstrair suas formas e utilidades, criar novos conteúdos, e, dentro do tempo adequado, transformá-los em atividades artísticas.
Mas é preciso ter o mínimo de crítica para não propor e não aceitar atividades pautadas pela imaginação (ou falta de) dos adultos, utilizando produtos que jamais seriam retirados da prateleira por aquela família e ainda prejudicando de fato o potencial do material para ser, efetivamente, reciclado. Isso sem contar a falta de vantagem artística para as crianças.
Arte é sustentável por si só. Folhas, galhos, terra, areia, comidas coloridas e outros corantes naturais combinam mais com o tema "sustentabilidade" do que os falsos trabalhos criativos feitos de plástico e durex colorido que eu vi naquela feira escolar e em tantos outros momentos da minha vida de observadora do universo materno-infantil.
Anne Rammi
Anne Rammi, artista plástica e mãe do Joaquim (3 anos) e do Tomás (1 ano). Experimentou com a chegada dos meninos a oportunidade de quebrar muitos paradigmas da maternidade contemporânea e relata suas experiências com fidelidade e uma peculiar (e muitas vezes polêmica) ironia. Escreve muito, fala muito, produz incessantemente, em especial sobre os temas do universo da maternidade crítica e consciente, como o parto humanizado, amamentação prolongada, criação por apego e em defesa de uma infância livre de consumismo, sendo personagem importante nos grupos ativistas da internet materna. Recentemente virou vegetariana e vive o dia a dia tentando adequar as ideologias às práticas, rumo a uma vida com foco na família, na sustentabilidade e na educação fora da escola. www.mamatraca.com.br