Gestação

A relação com o carro muda após a maternidade

Mamatraca

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  • Paola Saliby/UOL

    Hoje, nem mais rádio eu tenho no carro. Pois há uma trilha irritante chamada pelo meu filho de "Bia, Bia"

    Hoje, nem mais rádio eu tenho no carro. Pois há uma trilha irritante chamada pelo meu filho de "Bia, Bia"

Dirijo uma sucata toda batida um carro vintage. Vítima da minha grosseria no trânsito falta de apego aos valores mundanos.

Raramente lavo o carro. Ele é sujo por fora e já foi, relativamente, salubre por dentro. Hoje em dia, padece com cascas de banana, sapatos miniatura, brinquedinhos por todos os lados e farelos dos mais variados quitutes de farinha integral.

*

Há alguns anos, estava dirigindo e cantando (uma das minhas atividades favoritas na vida e que me ocupava um tempão, pois trabalhava muito longe de casa) e um carro veio em alta velocidade atrás de mim. Era uma mulher dirigindo, com muita pressa, e o trânsito estava enrascado. 

Sabe quando a pessoa se enfia em qualquer brechinha? Ela fechava todo mundo, ia galgando posições para chegar logo no farol. Quando o trânsito ficava devagar, ela acelerava curtinho e logo freava, já na minha frente. E assim ia, brecando e acelerando, buzinando e tentando escapar. E, quando o trânsito parava totalmente, ela pulava lá dentro, dava para ver o carro chacoalhando.

Pensei eu: o que quer essa maluca? Será que isso é um código para quem está querendo briga? Será que ela está me convidando para um racha?

*

Hoje em dia, nem mais rádio eu tenho no carro. Pois há uma trilha constante, irritante, carinhosamente chamada pelo meu filho de "Bia, Bia" e, quando ele está muito empolgado, de "Bia, Bia, Bia, Céu", proveniente de um radinho feioso todo colorido e com botões, que, ouso dizer, derrete o cérebro das crianças e é o melhor brinquedo do mundo para ter dentro do carro.

Se ele não quer ir embora. "Vamos ver o Bia?". Ele diz "carro" e sai correndo. Vitória.

Se começa a se irritar com o trânsito, toca o "Bia" e ele se diverte com as quatro músicas em "looping". Sossego.

Eu que ouvia de Killers a Lizt, ouço agora uma canção que esbalda poesia: "Em todos os cantos do mundo, encontramos fooooormaaass...".

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Tão suja (nem tanto, vá) como meu carro é minha boca. Falo muito palavrão. Outro dia fui, sucessivamente, provocada por um ignóbil no trânsito que fez a coisa que mais abomino. Cortou a fila imensa de carros parados para fazer um retorno por fora e forçou a entrada na minha frente.

Ele era dono de um carrão, mas não me intimidei e não dei passagem. Também não fico cheia de raiva, não grito nem nada, simplesmente, não permito passar um idiota desses. Eis que, sem querer, soltei um "aham, vai prá (coloque aqui o seu palavrão favorito)" e continuei cantarolando as excelentes canções sobre triângulos e borboletas alegres do infeliz radinho. Se meu filho ama, eu amo #not.

Meu carro é assim, baixo escalão e borboletas se misturam.

*

Anos depois, descobri o que tinha a mulher: um filho chorando aos berros no carro. Só um nenê em prantos, amarrado na cadeirinha, uma cidade de caos em trânsito e o desespero total de uma mãe, sozinha lá dentro, são capazes de utilizar aquela técnica: acelere e pare freneticamente. E, se o carro parar, pule para chacoalhar! Quanto mais movimento, menos ele vai chorar!

Técnica da mãe automotiva-maluca: eu uso.

*

Uma vez, quando estava grávida do segundo, encostei o carro no portão e peguei o controle. Minhas mãos de grávida, que dizem ser um sintoma essa falta de coordenação, logo o lançaram para baixo do banco, para aquele lugar onde devem morar as meias despareadas do Joaquim. Quem sabe?

Uma pessoa normal? Taca a mão lá em baixo e procura tateando. Uma grávida (que, se fizer isso, morre sufocada pelos peitos) desce do carro, puxa a calça para cima, arrasta o banco, agacha –e pensa nos exercícios Kegel (que servem para fortalecer os músculos da pelve–, acha um palito chupado de sorvete, tateia um pouco mais...

Perigoso ou não?

*

E, por fim, entrei em casa nesse dia com o rebento dormindo. Ele sempre dormia cinco minutos antes de chegar em casa. Só para ficar naquele mau humor de quem desperta da soneca à força e me fazer carregar seus 12 quilos, mais mala, mais mochila do computador, mais lancheirinha, mais barriga, mais toda a minha beleza escada acima.

Eis que encontra minha mãe no caminho. Desperta com susto:

PÁ-QUI-PÁ-IU

Eu não sei o que ele quis dizer. Alguém se arrisca?

Anne Rammi

Anne Rammi, artista plástica e mãe do Joaquim (3 anos) e do Tomás (1 ano). Experimentou com a chegada dos meninos a oportunidade de quebrar muitos paradigmas da maternidade contemporânea e relata suas experiências com fidelidade e uma peculiar (e muitas vezes polêmica) ironia. Escreve muito, fala muito, produz incessantemente, em especial sobre os temas do universo da maternidade crítica e consciente, como o parto humanizado, amamentação prolongada, criação por apego e em defesa de uma infância livre de consumismo, sendo personagem importante nos grupos ativistas da internet materna. Recentemente virou vegetariana e vive o dia a dia tentando adequar as ideologias às práticas, rumo a uma vida com foco na família, na sustentabilidade e na educação fora da escola. www.mamatraca.com.br

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