Gestação

A tal maternidade real

Mamatraca

Mamatraca

  • Paola Saliby/UOL

    Algumas escolhas menos convencionais para a vivência da maternidade são rotuladas como fora do normal

    Algumas escolhas menos convencionais para a vivência da maternidade são rotuladas como fora do normal

As radicais, as naturalistas, as cosmopolitas, as preocupadas, as ativas, as antenadas, as questionadoras, as acadêmicas, as festeiras, as passivas, as consumidoras, as consumistas, as livres, as educadoras, as normais... Não basta ser a mãe que você é, naturalmente, você fará também parte de um grupo.

Foi aí que eu encontrei o conceito de maternidade real. Olha, há alguns anos, quando eu o encarei pela primeira vez, ele falava de mães que não haviam saído de referências irreais, parece óbvio, né? A maternidade real tratava de mulheres de carne e osso, que cuidam dos filhos, vivem e respiram, vão ao banheiro e sentem frio.

Em oposição às mães impressas nos anúncios de revistas, bidimensionais figurinhas mercadológicas sempre associadas à venda de um produto. Em oposição às celebridades nas novelas, interpretando papéis formatados especialmente para as tramas, onde bebês aparecem de relance, onde as unhas estão sempre feitas. Em oposição às madonas religiosas eternizadas nas páginas dos livros da antiguidade e nas paredes dos museus.

Em oposição, enfim, a toda e qualquer imagem de maternidade que não faça parte do mundo real. Aquelas mães fictícias, inventadas, produzidas para propósitos que variam do "ilustrar a capa do livro de culinária" a "trazer emoção à trama quando a mocinha se vê grávida de seu antigo amor".

Claro está que eu muito me identifiquei com o conceito de maternidade real. Afinal, de revista, a minha vida não tem nada e eu muito me interesso por tudo o que for genuíno. Experiências reais são comigo mesmo.

Mas eis que a tal da maternidade real mudou de rumos. Algumas escolhas menos convencionais para a vivência da maternidade são sistematicamente rotuladas como fora do normal. Anormal. Irreal. Surreal. Utópica. Como se existisse uma bula do que é ser normal. Como se existir não fosse a única condição para o ser real.

Eu entendo que o momento em que vivemos –onde mulheres podem cada vez mais conectar-se a informações democráticas e escolher, dentre uma gama infinita de possibilidades, aquelas que lhes fazem sentido– contribuiu para que se criassem algumas idealizações do "maternar".

Por outro lado, na minha curiosa atividade de acompanhar os desdobramentos das mães na internet, eu não faço a mais vaga ideia do que aconteceu com a maternidade real.

Eu por exemplo, nos novos rumos da maternidade real, sou uma mãe irreal. Portanto, caros leitores, quem vos fala é um ciborgue. Essa seria uma maneira engraçada de encerrar esse texto, mas não será o caso, já que eu existo (mesmo! juro!) e adoro um "trololó".

Mesmo que eu tenha me revoltado contra o modelo obstétrico nacional, galgado meu parto por vias naturais após uma cirurgia, amamentado filhos e nunca oferecido leite de outro animal para eles, criado oportunidades de trabalho em "home office" (o que me permitiu acompanhar de perto meus bebês), procurando cuidados alternativos aos previstos pelas leis do convencional, nunca mais comprado nenhuma garrafa de refrigerante, e feito tudo isso do alto da minha condição humana, como todos, respirando, dormindo e acordando, sorrindo e chorando, muitas dessas escolhas maternas são encaradas como possibilidades irreais na grande rede mundial de computadores e fora dela!

Metade dos bebês do mundo não usa fraldas. E para eles isso é supernormal, afinal de contas, para um bebê, a realidade é uma novidade. As mães deles, certamente, não são holografias. São mães reais, de carne e osso, como eu e como você, que simplesmente aprendem –por cultura, por necessidade ou por opção– a ler os sinais fisiológicos das crianças e proporcionar outros recipientes, que não as fraldas, para suas escatologias. E é capaz de elas estarem lá em suas rodas de conversa revoltadas com a maternidade ocidental, que acha normal despejar 5.000 fraldas no lixão a cada filho.

Dezessete milhões de brasileiros não comem carne. Eles fazem diariamente seus esforços para driblar o culto à proteína animal e vivem vidas absolutamente de verdade. O número concentra todos os gêneros e todas as idades. Sim, vegetarianas engravidam e gestam seus bebês normalmente e bebês vegetarianos vivem muito bem, obrigada.  Dentre essas pessoas ainda existem aquelas que sequer comem verduras. Gente vivendo absolutamente do consumo de frutos. Quem pode dizer que eles não são normais por adotarem estilos de vida diferentes?

Há muitas crianças, vivendo nas maiores metrópoles que o planeta Terra conheceu, que vão passar a vida fora dos muros da escola. No Brasil, ainda temos a cultura cristalizada de que a única alternativa para a educação é a escola, enquanto que, em muitas outras partes do mundo, famílias têm descoberto outras maneiras de educar em comunidade, fora de modelos autárquicos. E eles são de verdade ou de mentira?

Eu escolho usar as palavras corretas. Existem escolhas que são não convencionais? Certamente! Isso é factual, as estatísticas provam. Mas onde está o grupo de regras que determina o que é ser normal, real ou qualquer outro julgamento do tipo?

Fica o convite para que a gente aproveite a maravilha do acesso cada vez maior à informação para traçar com autonomia os nossos próprios padrões de normalidade. Para encontrar as nossas realidades, nos sentindo como mães da mesma forma que se sentem os bebês: os limites são onde terminam as possibilidades, e é isso que chamamos de realidade. Por mães e para mães em busca de possibilidades, e não realidades pré-fabricadas.

Anne Rammi

Anne Rammi, artista plástica e mãe do Joaquim (3 anos) e do Tomás (1 ano). Experimentou com a chegada dos meninos a oportunidade de quebrar muitos paradigmas da maternidade contemporânea e relata suas experiências com fidelidade e uma peculiar (e muitas vezes polêmica) ironia. Escreve muito, fala muito, produz incessantemente, em especial sobre os temas do universo da maternidade crítica e consciente, como o parto humanizado, amamentação prolongada, criação por apego e em defesa de uma infância livre de consumismo, sendo personagem importante nos grupos ativistas da internet materna. Recentemente virou vegetariana e vive o dia a dia tentando adequar as ideologias às práticas, rumo a uma vida com foco na família, na sustentabilidade e na educação fora da escola. www.mamatraca.com.br

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