Gestação

Oitenta meses amamentando criança

Mamatraca

Mamatraca

  • Paola Saliby/UOL

    A criatura já andava, falava, comia picanha e seguia mamando no peito da mãe

    A criatura já andava, falava, comia picanha e seguia mamando no peito da mãe

Eu tenho dois filhos, separados por 20 meses entre seus nascimentos. O mais velho acaba de completar três anos, o que coloca o menor em seus 16 meses.

O povo adora falar que eu sou rapidinha ou corajosa. Mas a palavra que define mesmo é sem juízo.

O primeiro menino nasceu depois de uma cirurgia desagradável (que depois vim a saber desnecessária e indicada por displicência do médico). Descobri na amamentação uma das maiores realizações da esfera materna até então.

Esse menino mamou exclusivamente até os seis meses e tinha dobras de gordura para todos os lados. Não bebia sequer água até que completou esse primeiro ciclo. Era prático, era novo, era prazeroso.

O povo falava que eu era mentirosa, que eu dava mingau escondido. Mas era só amor e leite do peito.

O peito que, nos primeiros dias de vida, ainda saía da toca com alguma vergonha do mundo aqui fora, passou simplesmente a ignorar os olhares atravessados. Além de mamar, mamava em qualquer lugar. Praça, parque, casa dos amigos, na frente de quem fosse. Homens e mulheres que estivessem por perto na hora da fome do pequeno buda seriam invariavelmente impactados com sua refeição completa, branquela, estriada e de veias roxas saltadas.

Alguns diziam que era a coisa mais linda do mundo ver uma mãe amamentando o filho. Mas a maioria achava mesmo que eu era exibida. Para que amamentar tanto um bebê na frente dos outros?

Eu que pensava que, quando lhe nascessem os dentes, era hora de desmamar, afinal, onde já se viu dar o peito para um ser dentado, vi brotar das saudosas gengivas banguelas todo um conjunto de pequenas pérolas que atormentaram, por muitas vezes, nossas noites e dias. O menino seguia mamando. E eu passei a não ter pressa nenhuma de encerrar esse ciclo.

O povo começou a me chamar de exagerada. Afinal a criatura já andava, falava, comia picanha e seguia mamando no peito da mãe.

Não só não desmamei como desafiei as leis da vida e da morte: estava grávida de novo e segui amamentando o primeiro. Se eu ganhasse um real para cada vez que eu ouvi, vi ou vivi alguém pasmo com o fato de eu amamentar uma criança enquanto gerava outra talvez fosse o suficiente para... (coloque aqui uma coisa que se faz com 200 mil reais).

Aí já é demais. Mentirosa, exibida, exagerada e inconsequente. Confesso que alguma parte de mim se divertia em provocá-los. Enquanto todo o resto fabricava leite e seres humanos, enquanto tentava manter uma vidinha normal.

O segundo nasceu (agora ele desmama, vibrava a turma do deixa disso) e não só o mais velho seguiu mamando como achou por bem mamar mais. Afinal, em terra de colostro, leite posterior é rei. E mamaram juntos os dois irmãos.

Meu último apelido é radical. Porque só as mulheres radicais aparentemente levam amamentação tão a sério, ou nada a sério, a ponto de ser a coisa mais normal do mundo abrigar dois rebentos, de idades diferentes, pendurados ao peito. Ainda bem que eu tenho dois.

O meio da história se encerrou em si mesmo aos 12 meses do segundo,  no mês 12, 33 meses do primeiro, quando eu mesma completava a idade do Cristo. Meu filho mais velho parou de mamar.

O pequeno ainda mama como se não houvesse amanhã, grato e abusado da mãe que curte pacas essa historia de amamentar.

Eu fico pensando aqui se eu vou partir para o terceiro, o que hipoteticamente, segundo as previsões, me colocaria no marco de 80 meses ou algo como seis anos amamentando criança.

O povo me chama de maluca. Nisso, finalmente, eles têm razão.

Anne Rammi

Anne Rammi, artista plástica e mãe do Joaquim (3 anos) e do Tomás (1 ano). Experimentou com a chegada dos meninos a oportunidade de quebrar muitos paradigmas da maternidade contemporânea e relata suas experiências com fidelidade e uma peculiar (e muitas vezes polêmica) ironia. Escreve muito, fala muito, produz incessantemente, em especial sobre os temas do universo da maternidade crítica e consciente, como o parto humanizado, amamentação prolongada, criação por apego e em defesa de uma infância livre de consumismo, sendo personagem importante nos grupos ativistas da internet materna. Recentemente virou vegetariana e vive o dia a dia tentando adequar as ideologias às práticas, rumo a uma vida com foco na família, na sustentabilidade e na educação fora da escola. www.mamatraca.com.br

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