Profissão: mãe
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Paola Saliby/UOL
Não acredito que carreiras e filhos sejam plenamente conciliáveis na estrutura social em que vivemos
Nunca vivi um grande dilema para conciliar carreira e filhos. Por dois motivos. Primeiro porque não ligo a mínima para construir um percurso dentro de uma área profissional específica e escalar algum tipo de montanha do sucesso.
E depois porque, sinceramente, não acredito que carreiras e filhos sejam plenamente conciliáveis na estrutura social em que vivemos: na qual os filhos ainda são de responsabilidade exclusiva da mulher (salvo raras exceções) e há pouca ou nenhuma condição favorável para que, de fato, a vivência da maternidade e a progressão na carreira sejam vivenciadas no mesmo patamar. O que vejo são mães e mulheres fazendo escolhas e renúncias. Hora priorizam uma coisa, hora outra, e assim vão alcançando seus equilíbrios individuais. Com muito custo e esforço, o que, no meu entender, é o oposto de conciliação.
Depois que os meninos vieram, descobri meu próprio dilema, de uma conciliação aparentemente mais tangível, mas não por isso mais fácil: fazer casar realização pessoal e filhos, entendendo que a vivência da maternidade é uma parte de mim (ainda muito grande, dado que meus filhos não passam dos três anos), mas que existem outros aspectos que precisam ser contemplados. E daí entra minha visão polivalente do mundo, no qual realização pessoal e profissional se cruzam.
Eu já (e muitas vezes ainda sou) fui palhaça de festa, bancária, professora de inglês, professora de artes, pintora, artesã, cantora de coral, decoradora. Hoje em dia, na hora de preencher um cadastro que me pergunta a profissão, passo sempre por um divertido impasse.
Confesso que vou na onda do espaço para a descrição. Se for grande, gosto de colocar "produtora de conteúdo para internet". Que nada mais é do que um nome empolado para blogueira. Em um espaço menor, lanço a minha vertente "designer de interiores" e posso optar também por "artista plástica". Se diminuir, coloco "empresária", "decoradora" ou ainda "escritora". E quando a área para a profissão é pequenina, coloco a mais completa de todas: "mãe".
E veja só você, minha recusa em investir em somente uma área de trabalho me deu a chance de ser, de verdade, um pouco ou muito de tudo isso que está aí, mediante diploma ou aprendendo na marra mesmo. E não precisa nem dizer que vou me permitindo fechar portas e abrir janelas, mas sempre me acompanha uma vontade de buscar coisas novas, descobrir novos potenciais em mim, explorar o desconhecido. Vai ver é por isso que curto tanto o "trabalho" de mãe.
Eis que uma noite dessas, depois de um dia daqueles bem ruins, onde a ilusão de que maternidade e trabalho estão plenamente equilibrados é duramente destruída pela realidade. Muito trabalho, pouca possibilidade de cheirar o cangote dos meus filhos enquanto atendia às demandas do mundo dos adultos, meu filho mais novo teve uma previsível noite de cão.
Acordou várias vezes, procurando de madrugada a mãe que ele não teve durante aquele dia. Vou ser honesta, acho que sou meio imune à culpa. Havia motivo de sobra para que me afundasse nela, sentindo-me incapaz de suprir as necessidades do meu filho e das minhas próprias. E eis que me peguei pensando, enquanto amamentava o menino incansável, na minha premissa básica: não há conciliação.
E para fazer a vida mais bonita e engraçada, comecei a escrever esse post mentalmente, enquanto ele dormia no meu colo, pesado e confortável, espalhado por cima de mim. Sem querer correr o risco de acordar de novo a fera, e sabendo da falta que aquele colo fez para ele, resolvi terminar o post assim: elencando potenciais carreiras para quem sabe, em um futuro próximo, no qual a minha presença na vida das crianças não seja tão fundamental, eu utilize minhas habilidades adquiridas para novos desafios. Olha onde mais eu posso investir:
Compositora de jingles: autora incansável de curtas músicas, letra e melodia, incluindo o sucesso "Eca, Meleca, Eu Tomo Banho pra Não Dar Pereba";
Porteira noturna: ou qualquer outra atividade que exija vigilância constante no período das 0h às 6h;
Babá: toda boa mãe é uma boa babá;
Gestora de guarda-roupas: Junior, para mães de um filho só. Pleno, para mães de dois. Sênior, para mães de um casal. Master, para mães de três ou mais, com menção honrosa para aquelas que dividem o mesmo guarda-roupa para todos os filhos. Só uma pessoa que pareia meias, diariamente, sabe o trabalho logístico que é fazê-las chegar à gaveta certa;
Professora de ginástica localizada: autoexplicativo;
Mediadora de conflitos: essa só vale para aquelas que não apelam para a violência ou ameaças para apaziguar os ânimos em frente às disputas mais graves do contexto doméstico: fulano quer o carrinho preto e beltrano já pegou. Confesso que, para essa carreira, eu ainda preciso encarar mais um tempo de formação, mas, aqui em casa, o treinamento é bravo e diário, de modo que acredito que, em cerca de dois anos, estarei apta para trabalhar na ONU;
Cozinheira: se meus filhos podem comer o que eu cozinho, qualquer um pode, certo?;
Gerente de almoxarifado: se eu faltar na minha casa, os itens de primeira necessidade serão os primeiros a acabar. Um paradoxo;
Domadora de leões: novamente, autoexplicativo;
Gerente de RH: toda mãe que acompanha a escola, o tio da perua, a babá, o dentista, o médico, a avó ou qualquer outro braço de apoio na larga tarefa de criar filhos é uma grande gerente de pessoas;
Eu poderia ter ido "ad infinitum" com as habilidades que uma mulher desenvolve depois que os filhos chegam para divertir minha cabeça naquela madrugada pesada, cheia de dilemas não resolvidos. Mas, então, me resignei a curtir a respiração do meu bebê que vai crescendo e refletir sobre como espero, sinceramente, que, quando ele tiver seus filhos, estejamos já em um outro patamar, no qual essas discussões sobre conciliação entre maternidade e carreira abranjam as responsabilidades dos pais, das famílias, da sociedade como um todo. E que tenhamos de fato espaço para viver essa conciliação, com possibilidades de escolhas dignas, que atendam a necessidade básica dos envolvidos, adultos e crianças: amor e felicidade irrestritos.
Anne Rammi
Anne Rammi, artista plástica e mãe do Joaquim (3 anos) e do Tomás (1 ano). Experimentou com a chegada dos meninos a oportunidade de quebrar muitos paradigmas da maternidade contemporânea e relata suas experiências com fidelidade e uma peculiar (e muitas vezes polêmica) ironia. Escreve muito, fala muito, produz incessantemente, em especial sobre os temas do universo da maternidade crítica e consciente, como o parto humanizado, amamentação prolongada, criação por apego e em defesa de uma infância livre de consumismo, sendo personagem importante nos grupos ativistas da internet materna. Recentemente virou vegetariana e vive o dia a dia tentando adequar as ideologias às práticas, rumo a uma vida com foco na família, na sustentabilidade e na educação fora da escola. www.mamatraca.com.br