Gestação

A professora e a mãe

Mamatraca

Mamatraca

  • Paola Saliby/UOL

    Nenhuma teoria explica o tipo de mãe que virei: céus, tão distante da professorinha sabe-tudo!

    Nenhuma teoria explica o tipo de mãe que virei: céus, tão distante da professorinha sabe-tudo!

Houve uma época da vida em que eu não era mãe e que me dava bastante trabalho observar comportamentos infantis, maternos e paternos nas ruas. Não por acaso, era professora. Acho que todo mundo que fica muito teórico e pouco prático tem a habilidade de desenvolver teorias baseadas em julgamentos. Que funcionam à perfeição, quando você passa, no máximo, uma hora, com um grupo de crianças hipermotivadas a realizar pinturas, argilas, desenhos.

Eu era uma professora batuta e achava que isso vinha da minha alta capacidade de compreender as crianças e lidar com conflitos de uma forma lúdica, amorosa e compreendendo suas necessidades e… zzzzzz.

Eis que tive meus filhos e percebi que só era uma boa professora por dois motivos. Um: crianças são uns amores que topam qualquer parada, desde que envolva bastante sujeira. Dois: só encomendava massinha de uma única cor para não sofrer com a "misturança" que transforma tudo em uma gosma cinza (sim, sou uma separadora compulsiva de massinha em tratamento).

Exageros à parte, nenhuma teoria explica o tipo de mãe que virei. Céus, tão distante da professorinha sabe-tudo!

Fico imaginando um possível encontro entre a primeira e a segunda parte de mim, "eu com" e "eu sem" filhos. Seria uma chuva de olhares tortos da professorinha, rebatida com um certo "nem-te-ligo" da mãe, seguido de um tem uma dica? Como é que era mesmo? Esqueci como é que se faz para eles agirem, minimamente, normais.


Essa semana, acordei cedo com os meninos e fomos brincar em um Sesc, coisa bem bacana para se fazer em dias frios. Eles têm sempre alguma atividade motora para gastar os pequenos entediados. Pularam, correram, derrubaram tudo, brigaram, choraram, interagiram, gritaram.

Aquela coisa toda que criança faz.

Depois da brincadeira, resolvi passar em uma loja para dar cabo de sete presentes de aniversário do próximo mês. Sim, sete. Eu, que sou do tipo tia chata que só compra presente "útil", resolvi dar para toda essa galerinha, entre um e oito anos, o mesmo tipo de aparato que considero "sine qua non" no inverno paulistano, especialmente se você também se tornou o tipo de mãe que, como eu, não curte ficar lutando para que a criança vista o raio do sapato que ela não quer vestir: meias com solado antiderrapante.

Entrei na loja e a vendedora começou a me ajudar a separar as peças por numeração e por gênero. Sim, minha gente, até nas meias é impossível encontrar algo que possa ser utilizado por meninos e meninas, um caso à parte. Todos os modelos femininos eram pensados para princesas escalafobéticas e os masculinos friamente calculados para que eles, em algum momento da vida, explodissem o mundo. Ou domesticassem um dinossauro.

Eu lá no meu dilema tentando combinar, mais ou menos, o presente com a carinha da criança, numa dificuldade tremenda de achar modelos masculinos (como existem sempre mais opções para meninas, desde que nascemos, somos tratadas como consumidoras mais potenciais), e meus filhos começaram a destruir a loja.

Ajoelhei algumas vezes e conversei com eles, mas era nítido que não fazia o menor efeito. Na cabeça daquelas pestes, seguiam no parquinho do Sesc. E pularam, correram, derrubaram tudo, brigaram, choraram, interagiram, gritaram.

Aquela coisa toda que criança faz.

Respirei muito fundo e pensei em mim naquela sala de aula e tudo o que sabia e esqueci. Ou tudo o que achava que era certo e a vivência me ensinou diferente. Quer saber o tipo de mãe que sou?

Tentei combinar, mais ou menos, com os dois que não prejudicassem o trabalho ou a presença de ninguém. Então jogar as meias no chão estava, sim, proibido. Por outro lado, fiz uma avaliação a jato. O que é melhor nesse momento? Ficar convencendo esse terrorista de que ele não pode deitar no capacho da entrada (eu sei! eu sei! é sujo, imundo, mas acompanhe a minha lógica) ou, simplesmente, dizer para ele que o tapete é o limite, e ele não pode sair correndo da loja?

Tá vendo? Na minha cabeça, salvei o menino de um atropelamento, em troca de alguns vermes ou perebas. Na cabeça das vendedoras, eu era um fracasso.

– Ai… ele está deitando no chão.

– Ai… ele está lambendo a mão do manequim.

– Ai… Ai… Ai…

Sim, elas estavam visivelmente desconfortáveis. E olha que nem eram professoras, essa raça de gente que sabe cuidar de criança direitinho. Eram vendedoras de meias e nem para elas minha atuação valia nada.

Eis que lancei a teoria:

– Gente! Vamos concentrar! Tenho certeza que eles não vão prejudicar vocês e me responsabilizo caso estraguem alguma coisa. Nessa hora, dei uma rezadinha. Só a conta dos presentes já havia superado o orçamento em "zigalhões" de reais. Que mundo vivemos onde meias custam o preço dos raios dos sapatos que meu filho se recusa a calçar?

Fui seguindo:

– O que vocês preferem? Que eu fique lá patrulhando ou que a gente feche logo essa conta e eu vá embora? Vamos lá me ajudem! Quem consegue me achar uma dessa aqui, de leão, tamanho 19?

Olhei para o Joaquim e fiz aquilo que nenhuma mãe deve fazer, mas era por uma boa causa:

– Hey, loirinho! Prometo que, se você parar de tentar enfiar seu irmão na gaveta de calcinhas e cintas-liga, compro um presentinho para você. Olhei para a vendedora e mandei botar mais um par de macaquinho número 25.

As moças compraram minha estratégia. Vamos acabar com isso logo e deixa a criançada se comportar como criança. Ou seja, não se comportar. Depois que apertei a senha, com o mais novo pendurado no meu pescoço pedindo para mamar, e o mais velho pendurado na minha perna pedindo para apertar o botão verde, a vendedora ainda fez mais uma tentativa de compreender o óbvio:

– É sempre assim?

– É.

– E você não tem ninguém que te ajude?

– Ô se tenho! Todo mundo que me mostra um ombro amigo e não me faz sentir uma tralha de mãe que não sabe educar os filhos me ajuda, e muito!

Ela riu e emendou:

– Acho que você deveria procurar ajuda.

Saí da loja meio gargalhando por dentro e meio chorando por fora. Mas não acaba aí.

Chegando em casa, depois de me atazanar para dar seu presentinho, surgi com a meia de solado antiderrapante com estampa de macaco, que me custou o olho da cara, um papelão na loja e toda essa reflexão filosófica sobre maternidade. Só para ser surpreendida com uma respostinha atravessada, que só poderia vir mesmo da boca de uma criança estimulada (ou não coibida) a falar o que pensa e a fazer o que tem vontade:

– Nunca vou usar isso. Odiei essa meia.

Para isso, nem a professora dentro de mim teve resposta.

Anne Rammi

Anne Rammi, artista plástica e mãe do Joaquim (3 anos) e do Tomás (1 ano). Experimentou com a chegada dos meninos a oportunidade de quebrar muitos paradigmas da maternidade contemporânea e relata suas experiências com fidelidade e uma peculiar (e muitas vezes polêmica) ironia. Escreve muito, fala muito, produz incessantemente, em especial sobre os temas do universo da maternidade crítica e consciente, como o parto humanizado, amamentação prolongada, criação por apego e em defesa de uma infância livre de consumismo, sendo personagem importante nos grupos ativistas da internet materna. Recentemente virou vegetariana e vive o dia a dia tentando adequar as ideologias às práticas, rumo a uma vida com foco na família, na sustentabilidade e na educação fora da escola. www.mamatraca.com.br

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