Só o verão é digno com as mães
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Paola Saliby/UOL
No verão, em ambiente doméstico, meu filhos vivem pelados, o que reduz o trampo com roupa
Quando eu não era mãe, minha estação do ano favorita era o inverno.
Eu me considerava um acidente geográfico, sendo filha de imigrantes europeus, muito brancos e muito sensíveis ao sol. Meu pai é portador de uma série de problemas de pele e de visão por causa da exposição desregrada ao grande astro rei da luz durante sua infância na terra brasilis. Minha mãe é alérgica ao calor das mais variadas formas, de perebas a cansaço inexplicável.
Eu herdei tudo isso aí.
Dormia mal no calor, não conseguia nem pensar numa praia que já me coçava inteira.
Achava brega o verão.
No inverno, as pessoas são mais elegantes. No inverno, é mais gostoso dormir. No inverno, é melhor trabalhar.
Eis que, por uma ironia do destino, terminei ambas gravidezes em na estação mais quente do ano. Uma na abertura da temporada e a outra nas tais das águas de março, que fecharam o verão com promessa de vida no meu coração e um rombo no chão da sala devido à ruptura do encanamento velho da minha casa, por excesso de água. Maldito verão.
Lembrando que fim de gravidez não é digno para ninguém. No verão, piora.
Pés inchados, muito calor, muita sede, muita leseira, muita vontade de chorar. Isso não tem nada a ver com o verão, mas resolvi adicionar para vocês sentirem o drama. Era o suficiente para que eu declarasse ódio eterno a essa estação que não me quer bem e seguisse com o meu plano de vida de voltar para as minhas origens, perto da terra do Papai Noel, e passar a vida construindo bonecos de neve e tricotando gorros de lã em formatos interessantes.
Frio não me intimida. Cansei de ver crianças com seus pais nas ruas europeias (isso é um eufemismo para: vi uma meia dúzia de crianças, na única vez em que estive por lá, num mochilão pré-filhos com meu recém-adquirido marido), em baixo de neve ou chuva, tocando a vida sem nenhum medo do frio. Frio é energizante, é salutar.
Mas eis que a molecada aqui de casa foi crescendo e, sem muitas delongas, a lógica é simples: o inverno é uma porcaria e só o verão é digno com as mães.
Pronto. Estou fadada, novamente, a passar uma estação do ano inteira querendo mudar de trópico, só que ao contrário. Bom que agora não preciso de uma viagem internacional nem aprender a pilotar um trenó.
Basta levar meus trapos para o amado Nordeste brasileiro e inventar um novo uso para a gaveta exclusiva de peças de lã que ocupa meu armário. Olho para essa gaveta e penso: se você tem de colocar uma luva para sair de casa, o ambiente está contra a vida! Meus filhos nunca tiveram luvas e eu lamento sinceramente por quem precisa colocar isso na mão do pequeno. Tenho dificuldade para convencê-los a colocarem as meias. Se eu aparecer com uma luva, é motim na certa.
No frio, é uma porcaria dar o peito, especialmente, para quem pratica a tática ortodoxa de amamentar criança que dorme em quarto separado em livre demanda noturna. Nota importante: resolvi esse problema abolindo o quarto separado e jamais a livre demanda. No meu segundo filho, não passei nem um tiquinho de frio na madrugada.
Mas isso não muda a problemática do frio diário. Não dá para amamentar de gola rolê. Blusas para amamentar, normalmente, não contemplam a "friolândia". Logo, barriga de fora no gelado é a sina da amamentadeira invernal.
No frio, as crianças ficam melequentas, catarrentas, espirrentas. Eu jurava que um filho meu jamais teria um nariz sujo. Achava que isso se tratava de desleixo da mãe. Adivinha? Existe uma quantidade limite de vezes que se limpa o nariz de uma criança sem querer secretamente arrancá-lo fora!
Dar banho nas crianças no frio é uma judiação. Quando bebês eu nem esquentava, com perdão do trocadilho, e pulava altos banhos no inverno, em respeito aos seus corpinhos quentinhos. Mas criancinhas "sujismundas" que andam, pulam, brincam como se fosse verão, precisam de banho diário também no inverno. Que dó tirar aqueles pintinhos gelados do banho!
O inverno continua sendo uma época ótima para dormir, dizem. Mas quem disse que mãe dorme? Na hora que está aquele quentinho gostoso, a criança vem te dar bom dia às 5h40. E, no inverno, essa hora é noite. você pensa que eles ligam? Isso não é dormir, é tortura. Isso não é acordar para mais um dia, é um convite à depressão. E não é culpa da criança. É da geografia.
Eu hoje sou mais feliz no verão.
Verão é massa. Veja só, até os bichos ficam mais felizes no verão. Verão é vida. As crianças podem viver com mínimas peças de roupas. Descalços. Se forem meu filhos, em ambiente doméstico, vivem pelados, o que reduz, consideravelmente, o trampo com roupa. O verão é digno com as mães.
Não ficam doentes. Podem brincar lá fora até de noite. Se chover, é tão calor que podem tomar chuva. No verão, o sabão infantil fica no quintal e eles tomam banho de esguicho. É feliz, é prático. Não tem crise no verão. Não há brigas para colocar casacos. Não há brigas para colocar sapatos. Verão favorece frutas melequentas, saboreadas com as mãos. Verão favorece brincadeiras com água, terra, tinta e outras coisas que, no inverno, dá preguiça. Verão favorece desfralde, minha gente!
Pois bem. Agora vocês já sabem. Se quiserem fazer uma mudança pró-vida materna, escolham um lugar onde o sol brilha sempre. Esqueçam essa balela instalada nas mentes invernais de que o frio é estimulante, elegante e aconchegante. Ele pode ser mesmo tudo isso aí para os reles mortais que não cuidam de crianças.
Mas só o verão é digno com as mães.
Anne Rammi
Anne Rammi, artista plástica e mãe do Joaquim (3 anos) e do Tomás (1 ano). Experimentou com a chegada dos meninos a oportunidade de quebrar muitos paradigmas da maternidade contemporânea e relata suas experiências com fidelidade e uma peculiar (e muitas vezes polêmica) ironia. Escreve muito, fala muito, produz incessantemente, em especial sobre os temas do universo da maternidade crítica e consciente, como o parto humanizado, amamentação prolongada, criação por apego e em defesa de uma infância livre de consumismo, sendo personagem importante nos grupos ativistas da internet materna. Recentemente virou vegetariana e vive o dia a dia tentando adequar as ideologias às práticas, rumo a uma vida com foco na família, na sustentabilidade e na educação fora da escola. www.mamatraca.com.br