Gestação

Quando elogios não são bem-vindos

Mamatraca

Mamatraca

  • Paola Saliby/UOL

    Não dá para obrigar o mundo a reparar que a minha outra filha é uma menina incrível também

    Não dá para obrigar o mundo a reparar que a minha outra filha é uma menina incrível também

Sou fascinada pela genética e pelas milhares de combinações possíveis dos nossos genes, que resultam em seres humanos tão diferentes e perfeitos. Misturas interessantes que geraram, no nosso caso, uma filha de pele branca com olhos e cabelos castanhos e outra, igualmente branca, com olhos verdes e cabelos loiros.

E daí?

E daí que, desde que a loirinha nasceu, comecei a me sentir uma popstar cada vez que saía com minha bebezica. Era comum as pessoas me pararem para olhar de perto a beleza ariana da minha caçula ou apontarem para ela e saírem cochichando "parece uma boneca". Fato: bonecas bebês vêm nesse padrão mesmo. Só que, na maioria das vezes, minha morena estava junto e era, simplesmente, ignorada. E, quando era notada, rolavam perguntas e comentários: "ela é sua também?", "são irmãs?, "ah, essa outra é bonitinha também".

O que eu tenho vivenciado com as minhas filhas me faz pensar sobre o que leva as pessoas a se encantarem e tentarem reproduzir, artificialmente, os atributos da raça ariana (pele, olhos e cabelos claros). Será porque aqui esse biótipo é exótico? Será porque a mídia sugere que esse é o padrão desejável de beleza?

Uma das cenas mais bizarras que já vivi sobre isso foi há alguns anos dentro de uma lanchonete. Estava almoçando com as elas quando uma menina –de uns dez, 11 anos– veio por trás de mim e me abordou pedindo meu lanche.

Ela me pegou tão desprevenida que não consegui falar nada. Diante da minha mudez, ela apontou para Lia e disse: "Então me dá essa loirinha aqui e você fica com a outra". Fiquei sem reação. O grande paradoxo é que a garota reunia uma coleção de adjetivos passíveis de discriminação, mas, nesse caso (ou até por isso mesmo), ela estava sendo a agente do preconceito.


Tento tirar alguma lição dessas situações que até hoje, mesmo com elas mais crescidas, continuam se repetindo com bastante frequência. Recentemente, uma senhora, tentando remendar, falou que a morena era até mais bonita do que a loirinha.

Procuro explicar para as meninas que tudo na natureza vem em cores diferentes: olhos, peles, folhas, escamas, pelos, flores etc. Assim é o nosso mundo, e isso não faz com que ninguém seja melhor ou pior, cada um tem seu jeito e suas características. E também, sempre que cabe, emendo nesse assunto as escolhas da vida: cada um ama quem quiser; cada um reza, se quiser, para quem quiser.

Nesse fim de semana, depois de ouvir pela quarta vez, em apenas uma hora, os olhos verdes da irmã serem elogiados, vi os olhos castanhos se encherem d´água:

– Mãe, por que ninguém fala dos meus olhos também?

– Os seus olhos são lindos!

– Mas todo mundo só fala dos olhos da Lia! Ninguém me elogia! Eu gosto de elogios também!

Pausa e respiração da mãe para conter as lágrimas.

– Filha, mas a gente está sempre elogiando você, o quanto você é linda, esperta, educada...

– Eu sei que a família me elogia. Mas eu tô falando dos outros, mãe! Por que ninguém fala dos meus olhos, que eu sou bonita também?

Com ela, me senti impotente. Por mais que eu saiba que minha filha é uma menina incrível, não dá para obrigar o mundo a reparar nisso também. E o que aconteceu nesse dia foi bem simbólico, tanto para mim quanto para ela, pois, cada vez mais, esse é o rumo que as coisas vão tomar. Crescer dói. E deixar crescer também.

Priscilla Perlatti

Priscilla Perlatti trabalhou durante anos com turismo e depois que se tornou mãe da Stella (7 anos) e da Lia (5 anos) se assumiu designer. Já superou as preocupações com chupetas e desfralde (apesar que as birras ainda são bem comuns) e agora enfrentauma nova etapa com questões como dentes moles, alfabetização e o desapego na criação – esse último uma demanda das filhas já crescidas. Costuma dizer que hoje exerce uma maternidade reativa, pois os anos de experiência levaram embora a ansiedade em se antecipar às possíveis necessidades das crianças e trouxeram calma e serenidade para lidar com os infinitos desafios de ser mãe. Também gosta muito de falar de turismo e lazer com crianças. www.mamatraca.com.br

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